1. Os suspeitos de sempre

Toda a população acordou assustada. Pela manhã, a notícia do vandalismo se alastrou como fogo. Bens públicos foram depredados na calada da noite, em um protesto cujas verdadeiras motivações eram nebulosas. Pior ainda, as suspeitas recaíam sobre um grupo de jovens cheios de aspirações políticas que, como se comprovou mais tarde, desprezavam as tradições da comunidade. Por fim, facções políticas aproveitaram a distorção dos fatos e a comoção pública para manchar a reputação de seus adversários.

Não, isso não aconteceu em 2014, nem foi obra de participantes de back blocs. Isso aconteceu há mais de dois mil anos.

Em 415 A.C., a cidade Atenas acordou chocada com a depredação dos hermai, que eram bustos do deus Hermes fixados em lougradouros públicos para delimitar áreas urbanas e cruzamentos. Trata-se do célebre caso dos hermocópidas (“destruidores de hermais”), com contornos de aventura policial.

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As investigações conduzidas pelas autoridades gregas acabaram sendo contaminadas por interesses de grupos políticos que faziam acusações a líderes rivais, explorando informações duvidosas de testemunhas pouco confiáveis. Do que se pode apurar, as provas apontavam para o envolvimento do jovem Alcibíades e de seus amigos. Porém, até hoje os historiadores têm dúvidas sobre quem seriam os verdadeiros responsáveis pela depredação.

Na batalha política que se seguiu aos atos de vandalismos, a maior vítima foi a verdade.

Existe alguma semelhança entre a cidade de Atenas, em 414 A.C, e o Brasil, em 2014 D.C.?

2. Um padrão emergente

Há um fenômeno curioso descrito por Edward Wilson, o papa da sociobiologia em sua “bíblia”, e que talvez possa lançar uma primeira luz sobre um tema complexo.

Em mamíferos gregários, é comum que os membros de um grupo se organizem hierarquicamente. Nesse caso, quando jovens machos atingem certa idade, muitas vezes se apartam do grupo. Desprovidos do poder e do prestígio social dos machos mais velhos, que possuem status e acesso às fêmeas férteis, não há alternativa para esses jovens senão o de viver na periferia da coletividade.

Em seguida, esses jovens se unem em verdadeiras gangues, atacando esporadicamente um ou dois daqueles machos dominantes, buscando tomar seu lugar e retornar ao grupo em uma posição de prestígio. É um padrão tanto entre leões das savanas africanas como entre macacos langur da Índia meridional, um aspecto da perpétua batalha para procriar e disseminar genes.

Jovens depredando símbolos de status daqueles que estão no topo da hierarquia social, seja uma hermai grega que simboliza a tradição dos poderes constituídos, seja uma vidraça de agência bancária que simboliza parcela do poder de banqueiros. Mamíferos jovens seguindo um comportamento condicionado geneticamente para derrubar machos dominantes em um grupo no qual se sentem desprestigiados ou excluídos.

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Passa longe desse texto a pretensão de sugerir que todo comportamento de manifestantes seja apenas a reprodução inconsciente daquilo que herdamos de nossos antepassados mais primitivos. Porém, qualquer fenômeno social é resultado de múltiplos fatores, e não podemos desconsiderar o gatilho biológico que há por trás de certas ações.

Alem disso, aceitar esse aspecto da realidade de modo algum desqualifica, por si só, qualquer manifestação social. Não compartilho do preconceito que vê no componente biológico um demérito para nossas atitudes. Afinal, nosso lado animal precisa sair de vez em quando para tomar sol, e esse mesmo fator animal também é a fonte da admirável coragem dos jovens de todos os tempos, quando questionam valores ultrapassados.

Porém, precisamos nos perguntar até que ponto é válido lidar com a complexidade do mundo moderno recorrendo a soluções que só eram úteis quando nossos antepassados viviam no ambiente mais simples das florestas.

3. Os antecedentes

A nomenclatura estrangeira pretende conferir aos black blocs uma origem internacional, bem ao gosto daqueles que se imaginam contemporâneos o suficiente para não se sujeitarem às influências da história de seu país. Junto com a estética do preto básico e conceitos curiosos como o de performance, o próprio estrangeirismo do nome é um dos aspectos que confere aparente cosmopolitismo e vanguardismo ao movimento.

Com base nessa suposta internacionalização, afirma-se que os black blocs surgiram de ações organizadas por norteamericanos durante as manifestações contra o encontro da OMC em Seatle, em 1999. Ou, mais remotamente, que teriam sua origem nas ações de ativistas alemães em 1980.

Mas é realmente possível qualquer comportamento social que esteja desvinculado do contexto nacional? Em que pedida essa suposta inspiração estrangeira, e mesmo a estética do movimento, lançam uma cortina de fumaça para a correta compreensão de seus verdadeiros antecedentes históricos?

Em sua obra As Ilusões Armadas, o jornalista Elio Gaspari apresenta um retrato abrangente sobre os vinte anos de ditadura militar no Brasil. Quando relata as ações de grupos revolucionários que combatiam o governo militar, o quadro que surge de sua narrativa é claro:

. Eram jovens cheios de boas intenções, idealistas, mas politicamente ingênuos;

. Estavam insuflados pela retórica de teóricos acadêmicos;

. Eram incapazes de compreender adequadamente todas as consequências políticas e sociais de suas ações;

. Idealizavam seus próprios atos, mas não tinham noção da desproporção de força que favorecia seus adversários e os condenava, desde o início, a serem derrotados;

. Acabaram dando a desculpa que a ditadura precisava para endurecer ainda mais o regime, muitas vezes ao preço de suas próprias vidas.

Esse último item é fundamental. A verdade é que, se não existissem guerrilheiros comunistas nas décadas de 60 e 70, aqueles que se beneficiaram da ditadura teriam inventa-los. Mas, felizmente para os donos do poder, não havia necessidade de qualquer invenção, pois havia jovens vários idealistas que, com seus atos supostamente nobres, legitimaram perante a sociedade civil as medidas que o regime militar precisava implementar para controlar ainda mais vida de todos os cidadãos.

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Naquela época, eles foram os inimigos úteis dos militares, a desculpa perfeita para que os poderes constituídos eliminassem qualquer aspiração realmente democrática.

Naquela época. E hoje em dia?

Assim como antes, velhos sociólogos e antropólogos de esquerda tentam justificar com retórica de gabinete a ação dos jovens. Assim como antes, essa ação surge da justa indignação contra desmandos das autoridades públicas. Mas, assim como antes, disso não resulta o fim dos desmandos –  ao contrário, tal ação serve apenas para que as autoridades legitimem, perante a sociedade, a implementação de medidas que acabam penalizando não apenas os jovens manifestantes, mas todos os cidadãos, inclusive os que gostariam de também protestar.

A retórica da performance, a própria estética do pretinho básico e a denominação estrangeirista de black blocs não seriam uma roupagem nova para algo bem mais velho do que imaginamos? A quem serve a existência desses grupos, a quem serve renovação desse velho rosto por trás de uma máscara?

Quem não compreende a história, está fadado a repeti-la.

Da mesma forma que há algumas décadas no Brasil, a ingenuidade política de grupos de jovens, combinada com a romantização de suas estratégias e propostas, estaria entregando de bandeja aos donos do poder aquilo que mais precisam: uma justificativa para restringir um pouco mais as liberdades civis. Da mesma forma que há milênios em Atenas, a depredação de bens públicos é utilizada por facções políticas para atacarem seus adversários e obterem uma maior parcela, ainda que ínfima, de poder.

4. O cisne negro ainda está por aí

O fenômeno black bloc nada mais é do que um aspecto da anatomia do mesmo cisne negro que chegou ao Brasil em 2013: algo que tentamos compreender com idealizações precipitadas (“são jovens que lutam heroicamente contra os desmandos das autoridades!“) ou caricaturizações apressadas (“são baderneiros que merecem levar porrada!”), algo perante o qual nos posicionamos rapidamente a favor ou contra, sem maior reflexão.

Mesmo os black blocs não conseguem dimensionar todas as consequências futuras de seus atos. São parte de algo maior, que não compreendemos adequadamente ainda.

Por outro lado, testemunhamos pensadores acadêmicos repetindo os mesmos equívocos daqueles que, na década de setenta, insuflavam jovens a dar seu sangue contra uma ditadura de direita, a fim de instaurar no Brasil uma ditadura de esquerda.

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A verdade é que criar teorias e desenvolver exercícios de retórica a respeito da utilidade da destruição de bens materiais como forma de protesto ou de mudança do status quo pode ser realmente muito bonito no papel ou na tela do computador, pois nesses ambientes conseguimos nos proteger daquilo que não podemos evitar nas ruas: o imponderável que surge de multidões descontroladas.

Portanto, quando estamos diante de um cisne negro, o melhor a fazer é abdicar da pretensão de encaixar os fatos em teorias prontas e em exercícios de retórica. O melhor a fazer é formular perguntas, ainda que sem a pretensão de obter respostas imediatas.

5. As perguntas

Afinal, qual é o limite entre a depredação performática do black bloc e a agressão injusta? Quebrar a vidraça de uma loja de artigos importados é legítimo, mas e quebrar a loja de um pequeno comerciante que sustenta sua família? Destruir uma concessionária de veículos importados é permitido, mas e incendiar o automóvel popular de um modesto trabalhador? Atacar o repórter de uma grande empresa de telecomunicações que supostamente manipula a opinião pública é tolerável, mas e quanto a atacar um jornalista freelancer que tenta ganhar uns trocados na cobertura?

Nesses casos, como traçar nas ruas e no calor dos eventos a linha que separa o permitido do não permitido e como impedir, na prática, que essa linha não seja apagada?

Muitos dizem que os atos de depredação seriam uma reação contra as agressões e abusos da força policial, mas como é possível acabar com a violência agregando a ela outra forma de violência?

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Se os blac blocks utilizam máscaras, como impedir que pessoas infiltradas se aproveitem desse anonimato para cometer atos que os próprios black blocs condenariam?

Como evitar que o clima de desestabilização instaurado em espaços públicos graças à atuação de quem depreda apenas vidraças e terminais bancários não seja aproveitado por oportunistas para a prática de crimes realmente violentos?

Haveria outra forma, não-violenta e construtiva, de utilizar essa energia, essa vontade de transformar o mundo?

Essas perguntas, claro, devem ser respondidas por quem sai às ruas para participar de um black bloc. Porém, há perguntas fundamentais que devem ser respondida por todos nós:

Se não confiamos na polícia e em outras autoridades que tradicionalmente praticam abusos de poder, e tampouco confiamos em garotos que querem transformar o mundo municiados de rojões e tijolos, como poderemos nos proteger dos resultados nefastos do encontro dessas duas forças? A sociedade civil será, mais uma vez, refém de poderes antagônicos e com o qual não nos identificamos?

Estamos fadados a repetir os mesmos erros do passado? Vos cabe a resposta, leitor.

Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."