O samba, essa alta e evoluída produção humana, é a festa de encontrar alegria na tristeza. Cantam os sambistas para chorar o que não conseguiram declarar. Desilusões, dores, falhas. Nada é mais sincero e se mistura com tanta facilidade que a composição de uma poesia com o ritmo de um tamborim. Gostamos tanto porque machuca, mesmo fazendo tão bem.

É por isso que ouvimos. E de novo, e de novo e de novo: pra tirar o espinho e descobrir que uma velha esperança não precisa doer. Não precisa, mas vai.

Link YouTube | Baden Powell fazendo seu “Samba Triste”

Não gostar de samba é um ato de repúdio à realidade. Há uma verdade quase transcendente de fatos que simplesmente reproduz a letra indicada para o momento que você mais precisa. O samba surge. Como se fosse uma opinião que brota de maneira intrometida ou inconveniente, mas nem um pouco inadequada.

Respostas foram escritas pelos maiores sambistas. Homens que mergulharam, especialmente, na tristeza pra compor. E por mais que seja um exagero confinar na amargura o significado de realidade, não se deve dispensar o fato que qualquer sentido torna-se mais aguçado a partir de desalentos.

Os poetas que o digam.

Poetas como o Vinicius de Moares, o preto mais branco do Brasil na linha direta de xangô. Certa vez ele disse: “pra se fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”. De acordo. Mas Vinicius estava incompleto. Não somente para fazer, mas para ouvir e compreender a beleza de alguns sambas também é preciso este bocado de tristeza.

Só assim alguns poetas fazem sentido, fazem efeito e fazem a cura.

Tipos esses. Os 10 sambas pra você ouvir e sentir o chifre sendo arrancado com um alicate.

 

Elza Soares – “Malandro”

Antes de uma artista injustamente ridicularizada pela mídia, Elza Soares é uma das maiores interpretes brasileiras. Quando gravou “Malandro”, em 1976, além de cravar de vez seu nome na história do samba, apresentou ao mundo um dos compositores mais regravados do século: Jorge Aragão.

No melhor estilo “malandro também sofre, mas fazer sofrer será ainda pior”, é, acima de tudo, uma música sobre amizade. As boas, inclusive.

“Malandro
Só peço favor que te tenhas cuidado
As coisas não andam tão bem pro seu lado
Assim você mata rosinha de dor”

Paulinho da Viola – “Onde a Dor Não Tem Razão”

Encontrei o Paulinho da Viola numa festa da MTV em 2008. Fiquei paralisado. Possuía noção de quem se tratava, mas não fazia ideia do que poderia falar pra puxar um papo. Paulinho estava encostado elegantemente numa mesa qualquer. Esperava o garçom, um amigo, sei lá. Fui até a mesa. Estiquei o braço, o cumprimentei e disse:

— Você é o cara.
— Sou coisa nenhuma — respondeu.
— É sim, porra — argumentei.
— Saúde, então — bebeu.

Foi uma conversa e tanto.

“Quem esperou como eu por um novo carinho
E viveu tão sozinho tem que agradecer
Quando consegue do peito tirar um espinho
E que a velha esperança
Já não pode morrer”

Noel Rosa – “Último Desejo” (por Gal Costa)

Neol Rosa (na foto caracterizado por Rafael Raposo no filme Poeta da Vila) foi um dos primeiros grandes sambistas brasileiros. Tinha uma capacidade linda de desenvolver letras a partir de pequenas coisas. Como na vez que teve as melhores camisas escondidas pela mãe pra não sair casa e questionou os amigos: “com que roupa eu vou?”.

A versão de Gal Costa para “Último Desejo” é brilhante, apesar de não tão popular como a de Ney Matogrosso. A música fala sobre, pra variar, saudade. Ao mesmo tempo é incrivelmente libertadora.

“Sem retrato e sem bilhete
Sem luar sem violão
Perto de você me calo
Tudo penso nada falo”

 

Paulo Vanzolini – “Ronda”

Vanzolin não gostava de ser chamado de músico. “Não entendo nada de música. Eu sou zoólogo, ninguém quer entender isso”, dizia. Mas quem precisa da alcunha ou formação oficial de músico quando se tem a inspiração pra criar um samba assim?

“Volto pra casa abatida, desencantada da vida
O sonho alegria me dá nele você está
Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
‘Desiste, esta busca é inútil’
Eu não desistia”

Benito Di Paula – “Retalhos de Cetim”

“Retalhos de Cetim” conta a história de um sambista que preparou todo um carnaval pra mulher. Contudo, de última hora, ela faltou. Apenas faltou. Sem explicação ou misericórdia. Benito, como de praxe, interpreta de maneira impecável. Já você, entorpecido, incorpora o personagem.

“Ensaiei meu samba o ano inteiro
Comprei surdo e tamborim
Gastei tudo em fantasia
Era só o que eu queria
E ela jurou desfilar pra mim”

Nelson Cavaquinho – “A Flor e o Espinho”

O verso mais marcante do samba brasileiro. Um gênio que, assim como o amigo Cartola, morreu no mais obscuro e desprezível esquecimento.

Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca flor
Eu só errei quando juntei minha alma à sua”

Lupicinio Rodrigues – “Nervos de Aço” (por Paulinho da Viola)

Lupicínio era gaúcho, mas podia ser mineiro. Era tímido e, no melhor estilo come quieto, reuniu amores por Porto Alegre (RS). É um dos grandes símbolos da charmosa boemia brasileira dos anos 60. Compôs “Nervos de Aço” após ver a ex-mulher nos braços do novo amantes. Ali mesmo, no bar, escreveu a letra, entregou nas mãos dela e foi embora.

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O manuscrito original se perdeu. A letra, nem um pouco.

“Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação”

Caetano Veloso – “Desde Que o Samba é Samba”

Caetano Veloso traz um ótica otimista nesse samba. Mas não antes de expressar uma enorme solidão de quem foi sumariamente abandonado. A ordem para mudar de rumo, segundo Caetano, é simples: cantando. Funciona também ouvindo.

“Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora”

Cartola – “As Rosas Não Falam”

“Não sei, as rosas não falam”, foi o que disse Cartola a Dona Zica, sua esposa, ao ser questionado porque as flores cresciam tão rapidamente. Três dias depois a canção brotou. Dona Zica jamais negou essa inspiração. Nem precisava, as rosas haviam sido um presente de Cartola.

“Queixo-me às rosas, mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti”

Martinho da Vila – “Disritmia”

Disritmia” é um tipo de manifesto do desespero. É a música que traduz tudo aquilo que você, bêbado (ou não), balbucia quando lembra dela. É o discurso que você rascunha, planeja e ensaia – mas deixa pra falar outra hora. Uma música que te deixa sóbrio no meio do porre e te faz concluir de modo consentido e com a densidade do mais cruel relator: “é isso”.

Pior que é.

“Eu quero ser exorcisado
Pela água benta desse olhar infindo
Que bom é ser fotografado
Mas pelas retinas desses olhos lindos
Me deixe hipnotizado
Prá acabar de vez com essa disritmia”

É claro que nem todo enredo dedicado precisa ser triste.

Mas aí o que seria do carnaval se não três dias antes da quarta-feira de cinzas?

Fred Fagundes

Fred Fagundes é gremista, gaúcho e bagual reprodutor. Já foi office boy, operador de CPD e diagramador de jornal. Considera futebol cultura. É maragato, jornalista e dono das melhores vagas em estacionamentos. Autor do <a>"Top10Basf"</a>. Twitter: <a href="http://twitter.com/fagundes">@fagundes</a>."