Todos conhecem aquela pessoa que se doa e ajuda todos a sua volta, mas acaba esquecendo de si e deixando suas próprias necessidades de lado.
Esse comportamento, apesar de nobre, pode gerar consequências negativas e uma vida infeliz.
Tenho amigos que já emprestaram dinheiro para ajudar outra pessoa, mesmo estando devendo na praça. Outros que chegam em casa super tarde depois de duas jornadas de trabalho e ficam horas no celular oferecendo o ombro aos áudios de amigos que teimam em cair nas mesmas armadilhas psicológicas repetidamente. E um que mesmo em defesa de doutorado aceitou cobrir as aulas de um colega que estava passando por dificuldades pessoais.
O que todos estes tiveram em comum? Estresse, ansiedade e um prejuízo à sua própria vida.
Antes de qualquer coisa, preciso dizer: ajudar os outros é importante, louvável e necessário.
Porém, esse post é um chamado às armas: precisamos cuidar de nós mesmos. Se não estivermos em nossa melhor forma, não seremos capazes de prestar uma boa ajuda aos que estão à nossa volta.
É difícil sustentar atos contínuos de generosidade sem uma boa dose de autocompaixão e foco em seu próprio bem-estar. Não é uma ode ao egoísmo, mas a um altruísmo sustentável.
As vantagens egoístas do altruísmo
Existiria ou não o verdadeiro altruísmo?
Joey, em Friends, leva uma clássica discussão com Phoebe, onde afirma que não existe nenhuma ação verdadeiramente altruísta, pois sempre haveria a obtenção de um lucro pessoal. Quem diria que Joey poderia estar embasado pela neurociência?
António Damásio, médico neurologista e neurocientista, concordaria com a afirmação do personagem, de que não existem boas ações totalmente altruístas. Ele dedicou sua vida a estudar as emoções e motivações humanas sob uma perspectiva evolucionista.
Em seu livro “O erro de Descartes”, afirma sobre o altruísmo:
“Além do auxílio que os altruístas trazem aos outros, podem fazer bem para si próprios na forma de reconhecimento social, honra e afeto público, prestígio, autoestima e até mesmo vantagem financeira.”
Ou seja, mesmo nas situações em que uma “boa ação” parte de uma motivação intrinsecamente altruísta, existe um benefício direto para o benfeitor, que passa a usufruir dos benefícios citados acima. O altruísmo teria sido uma vantagem do ponto de vista evolutivo e, ao favorecer a vida em comunidade, foi uma característica selecionada ao longo de nossa evolução.
O autor ainda complementa que estes comportamentos teriam um benefício adicional: permitiram evitar o sofrimento futuro provocado pela vergonha de não ter agido com altruísmo. Sim, a famosa e destruidora culpa.
O sentimento de culpa é muito postulado por Freud, que o considera parte intrínseca da vida em grupo. A sociedade cultivaria a culpa, como recurso para se sustentar e manter coesos os laços entre seus participantes. Afinal, é mais difícil manter os elos sociais se cada um age em sem próprio proveito, sem sentir nenhum remorso ao passar por cima dos sentimentos alheios.
E considerando que a vida em grupo é essencial para a sobrevivência humana, vemos que as atitudes altruístas realmente atuam como uma vantagem evolutiva, pois favorecem a comunidade
Talvez você possa considerar isso triste, mas ao que indica a neurociência e a psicanálise, o real motivo de nossos comportamentos altruístas seria o processo de seleção natural desta característica e a fuga da culpa social por agir de forma egoísta.
Independente dos motivos, pode existir um risco muito alto para o benfeitor se ele não cuida de suas necessidades, o que nos leva ao dilema do cuidador.
O dilema do cuidador: o mundo precisa de você no seu melhor
Lembro do episódio de Baywatch em que os salva-vidas aprendem que, se durante um salvamento uma onda jogar o salva-vidas e a vítima em direção a uma formação rochosa, o salvador deve posicionar a vítima para ser impactada na sua frente, protegendo a si mesmo.
Ou seja, a segurança do cuidador é a mais importante neste caso. Se ele não estiver e em pleno uso de suas capacidades, como poderá levar a vítima fragilizada de volta à terra firme?
É o mesmo caso das orientações de segurança em uma viagem de avião: “Em caso de descompressão e o uso das máscaras de oxigênio for necessário, você deve colocar primeiro a máscara em você próprio para depois auxiliar outras pessoas, mesmo que seus filhos ou idosos”.
Ou seja: alguém que cuida do outro deve, primeiramente, cuidar de si mesmo.
Afinal, como ajudar ou outros se você não estiver em 100% da sua capacidade física e psicológica? É importante levar esse ensinamento pra vida.
É o que defende Scott Adams, no seu livro “How to Fail at Almost Everything and Still Win Big”:
“Pessoas generosas cuidam de suas próprias necessidades primeiro. Na verdade, fazer isso é uma necessidade moral. O mundo precisa de você no seu melhor.”
Ou seja, ser um pouco egoísta não torna você automaticamente um sociopata. É uma questão de pensar estrategicamente a longo prazo. Uma vez que as suas necessidades pessoais estejam minimamente supridas, seus pensamentos podem se voltar a como tornar o “mundo dos outros” um lugar melhor.
Podemos fazer um paralelo com alguns grandes saltos evolutivos da humanidade que se deram em momentos de abundância de recursos. A abundância de eletricidade baixou o custo de sua utilização, permitindo um avanço tecnológico sem precedentes. Com a diminuição exponencial no custo dos micro transistores, estamos vivendo a era de abundância dos microprocessadores, deixando a tecnologia e a internet cada vez mais presente em nossa vida.
Mas como defende Chris Anderson, em seu livro “Free”, a abundância de um recurso tende a gerar seu desperdício. E isso não seria totalmente negativo.
A lógica é que para gerar disrupções e evoluções reais é preciso não ter medo do desperdício, pois testar soluções não comprovadas é “desperdiçar” recursos. E isso só pode ser feito se você não estiver se preocupando em economizar.
O ato de cuidar de si e dos outros funciona da mesma forma. É quando você tem abundância, com suas necessidades e anseios atendidos, que pode dedicar sua atenção ao outro de forma plena, com mais potencial de gerar resultados reais.
Para isso, Scott Adams defende um modelo parecido com a pirâmide hierárquica de necessidades de Maslow: é necessário atender primeiro suas necessidades pessoais, para posteriormente pensar em como fazer do mundo um lugar melhor. Segundo ele, seres humanos estariam programados para pensar primeiro em sua sobrevivência, depois na sobrevivência de sua família, de sua “tribo”, país e, por consequência final, do mundo.
É claro que existe uma armadilha aí. Muitas pessoas vivem suas vidas “acumulando” essa dedicação a si mesmo, em uma espécie de ciranda hedonista, buscando prazer e a satisfação de todos seus desejos, mas nunca conseguem chegar a este próximo nível, de fazer algo pela comunidade.
O desafio e provocação aqui é conseguir encontrar este equilíbrio. Saber identificar quando estamos precisando cuidar de nós mesmos, ou seja, quando não estamos no nosso “melhor”, citando Adams.
E a partir daí, voltar a dirigir nosso olhar aos que estão em volta de nós, precisando de apoio. É sobre controlar a culpa e o instinto altruísta, para usá-los da melhor forma.
Post muito longo, não li nada:
Talvez o verdadeiro altruísmo não exista, mas isso não importa.
É melhor ajudar os outros quando você está em 100% da sua capacidade física e mental. Lembre-se de colocar a máscara de oxigênio em você primeiro.
Você não precisa se sentir culpado por pensar em si mesmo. É preciso encontrar o equilíbrio entre o investimento no bem-estar próprio e na comunidade, maximizando o impacto positivo sem se prejudicar no processo.
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