Recentemente, o Banco Mundial divulgou o “Grand Corruption Cases Database“, projeto que reúne informações de aproximadamente 150 casos de corrupção e lavagem de dinheiro em que foram comprovadas movimentações bancárias de, no mínimo, US$ 1 milhão. Foram contemplados no banco de dados apenas casos em que houve provas de desvio de dinheiro público para bancos no exterior.
Quatro brasileiros estão na lista:
- Edemar Cid Ferreira (fundador e ex-presidente do Banco Santos, condenado em 2006 por crimes contra o sistema financeiro),
- Daniel Dantas (fundador do Banco Opportunity, acusado de lavagem de dinheiro no Reino Unido e nos Estados Unidos por meio de um fundo de investimentos),
- Rodrigo Silveirinha Correa (ex-subsecretário de Administração Tributária do governo Anthony Garotinho, no Rio de Janeiro, condenado pelo envio de US$ 30 milhões para a Suíça no esquema conhecido como Propinoduto), e
- Paulo Maluf (ex-prefeito de São Paulo e deputado federal, acusado pelo procurador-geral de Nova York de movimentar US$ 140 milhões no Banco Safra e por desvio de dinheiro).
Corta. Flashback.
Nas eleições de 2010, Paulo Maluf obteve 497.837 votos e foi o terceiro candidato mais votado como deputado federal por São Paulo, atrás de Tiririca (1,3 milhão de votos) e Gabriel Chalita (560 mil). Isso significa que quase meio milhão de pessoas votaram em um homem considerado (inclusive) pelo Banco Mundial um sujeito corrupto. Quando o Grand Corruption Cases Database tornou-se público, o pensamento que me veio foi:
Como é possível que o malufismo ainda seja tão expressivo?
Um amigo meu respondeu algo que, junto com uma nota que li no PsyBlog, daria origem a este artigo:
O mundo não é justo.
Não, não é. Mas nós queremos acreditar que sim. Que você colhe o que você planta. Que o que vai, volta. Que o mundo é um lugar em que leis invisíveis regem de maneira implacável tudo e todos. No longínquo ano de 1978, os psicólogos Melvin J. Lerner e Dale T. Miller já percebiam essa tendência de crer na justiça do mundo:
“Os indivíduos têm a necessidade de acreditar que vivem em um mundo onde as pessoas têm aquilo que merecem.”
A esta “necessidade de acreditar” os psicólogos deram o nome de hipótese do mundo justo. Trata-se da motivação que nos leva a crer que coisas boas acontecem a pessoas boas; coisas más acontecem a pessoas más. Isso é possível por meio de avaliações de características e ações alheias de acordo com o resultado que se apresenta e com as convenções sociais.
“A crença de que o mundo é justo possibilita o indivíduo a confrontar seus ambientes físico e social como se fossem estáveis e ordenados. Sem tal crença, seria difícil para o indivíduo se comprometer a perseguir objetivos em longo prazo ou até mesmo para o comportamento socialmente regulado do dia a dia.” – M. J. Lerner e D. T. Miller
Acreditar no mundo justo é fundamental para que tenhamos um chão, um porto seguro, uma base. Percebam: quando surge uma situação notoriamente injusta, ficamos perturbados e só conseguimos repousar quando encontramos uma explicação objetiva ou cognitiva para o impasse (ainda que, para isso, precisemos subverter o status quo, ou seja, buscar novos conceitos para explicar o problema).
Link YouTube | Em 11 de setembro de 2001, morreram milhares de pessoas sem qualquer conhecimento do conflito entre os EUA e o Afeganistão. Elas estavam no lugar errado, na hora errada. Por que elas e não outras? Não há explicação
É-nos inconcebível a ideia de ausência da justiça como força reguladora do mundo. Mas as ações não obedecem um certo tipo de balança, a não ser a própria imprevisibilidade. No entanto, nosso anseio por uma justiça fundamental é forte a ponto de distorcer e inverter o conceito de culpa, desde que seja mantida a coerência narrativa de nossa realidade. Que o mundo se mantenha um local supostamente justo, ainda que isso seja uma ilusão coletiva.
A necessidade humana de explicar e/ou justificar racionalmente acontecimentos trágicos, dentro de uma ótica coerente com nosso senso fundamental de “justiça no mundo”, pode se tornar um problema. Não raro, a explicação resultante pode distorcer a realidade a ponto de inverter o conceito de culpa. Ou mesmo fabricar elementos inteiramente novos como fatores causais. Os psicólogos Carolyn L. Hafer e Laurent Begè perceberam isso num estudo realizado em 2005.
“Uma mulher é estuprada por um estranho que entra em seu apartamento enquanto ela coloca o lixo pra fora (…) A vítima do estupro descreve como muitas pessoas (inclusive um amigo próximo) sugeriram que ela era parcialmente culpada pelo ocorrido: ou porque tinha uma ‘atitude negativa’ que pudesse ter ‘atraído’ mais ‘negatividade’; ou porque ela escolheu viver naquele bairro em particular.”
No caso em questão, atribui-se parte da culpa à vítima – afinal, temos de provar que o mundo é justo, não? E é então que caímos no erro comum de culpar quem culpa não tem. É um absurdo, claro, mas como conseguiremos dormir à noite sabendo que o mundo tem o caos como agente regulador? Talvez o mundo seja simplesmente injusto.
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