Existe uma aparente tensão entre a independência e a colaboração. Por um lado, todo mundo deseja o máximo de autodeterminação e independência – não se importar com a opinião dos outros, fazer o que a própria consciência dita. Por outro lado, toda forma de isolamento é artificial – o individualismo exacerbado nasce de uma fé irracional na independência como algo que existe “de natureza”, que é um direito ou que simplesmente se merece. Nada disso é garantido.
Essa tensão é aparente porque o que queremos é pertencer ao mundo, e existir como alguém até certo ponto relevante – e o modo para atingir isso é oferecer ao mundo aquilo que nos é próprio, particular.
Mas a tensão realmente surge na medida em que nos entregamos aos outros seja para agradá-los simplesmente, ou porque não temos coragem de fazer diferente do que esperam de nós; ou quando nos tornamos individualistas cretinos (num espectro de assholes a psicopatas), e não nos importamos com os impactos de nossas ações sobre os outros.
Esses extremos ocorrem quando achamos que existe alguém certo – seja internamente, na figura dessa ruminação estreita que nos acompanha no cotidiano e que chamamos de “eu”, seja dentro dos outros, de suas expectativas e vontades, que muitas vezes estão em completo desajuste com suas reais necessidades, que dirá as nossas.
Mas é necessário clarificar: é claro que existem muitos acertos por todo lado. Em cada ocasião, sempre pode haver alguém certo, e você mesmo, é claro – pelo mero fato de estar vivo e ter tempo sobrando para ler um texto como esse –, tem feito, sem dúvida, muitas coisas certas. Mas o que se quer dizer com não haver alguém certo, “inerentemente certo”, é que não existe nenhum tipo de garantia ou isenção automática quanto as ações ou o modo de se portar no mundo, a atitude de forma geral.
Não adianta guardar algumas concepções sobre certo ou errado, cool ou bleh, alguma lista de princípios, ou mesmo suas próprias conclusões duramente extraídas da experiência prévia. Não que eu esteja dizendo para descartar essas coisas todas, apenas que não podemos colocar em ideias prontas, em qualquer tipo de prescrição, a responsabilidade sob nossas atitudes. Essa responsabilidade recai apenas sob nossa presença e atenção sem julgamento em cada circunstância, com relação a todos os envolvidos e nossos próprios conteúdos mentais – que incluem também a memória e as prescrições.
Em outras palavras, assim como é fácil se escravizar pelas expectativas dos outros, da sociedade, ou de questões menores como as burocracias do mundo e as estruturas duvidosas que mantém governo, economia e todas as instituições já criadas por seres humanos, é muito fácil se tornar escravo de si mesmo e das próprias prerrogativas. Provavelmente cada um de nós é bastante determinado por esses fatores externos, estejam eles ou não sob nosso controle, mas sem dúvida somos determinados (escravizados) pela nossa própria bagagem de hábitos.
Ainda que sempre todos os envolvidos possam estar errados, essa potência para o erro pode ser encarada como um problema ou como uma oportunidade. Se abandonamos o desinteresse e a indiferença, e nos relacionamos com os conteúdos internos e externos sem ansiedades, o potencial de erro naturalmente se torna uma pletora de possibilidades. Essa é a vantagem do erro perante o acerto: o acerto tem certo fascismo totalitário embutido; não há dois acertos (apenas para os lunáticos que defendem teorias relativistas de conhecimento, é claro), mas o erro é múltiplo. Há infinitas formas de errar. Ainda que ele possa ser grave, perigoso ou difícil, também pode ser adorável, interessante, profícuo.
Quando uma criança fala errado uma palavra, achamos bonito seu esforço, e até o fato de não saber bem qual é o problema, qual é o som que está sendo ignorado ou trocado. Outros erros, cometidos com grande ingenuidade, e sem má-intenção – como uma falha num formulário burocrático que nos impede de viajar – podem nos causar raiva extrema. Algumas vezes o próprio fato de a pessoa ser tão inocente em seu erro, e ele nos atingir tão profundamente, é motivo de desespero existencial que se manifesta numa raiva difusa, sem objeto específico, que podemos carregar por dias.
Há erros e erros. Podemos até hierarquizá-los – eles são vivos, se alteram e se repetem, ao contrário dos acertos, que são um tanto definitivos e algo mortos em meio ao mármore – isso quando não são o pior de tudo, erros disfarçados.
Talvez algo assim tenha querido dizer o dramaturgo Samuel Beckett, com seu “Fail better”, fracasse cada vez melhor. O sucesso é sempre muito mais perigoso do que qualquer fracasso.
Os comediantes de stand-up bem sucedidos invariavelmente comentam que a carreira deles não é considerada garantida apenas quando se descobrem capazes de regularmente fazer plateias rirem ao longo de todo um espetáculo – mas que a experiência de dar vários “bombs” (que é o oposto do nosso “bombar”, isto é, efetivamente não fazer quase ninguém rir, e ser hostilizado ou ignorado pela plateia ao longo de um show inteiro) e aprender a lidar com isso é que é essencial.
Voltando à reflexão “individualismo vs colaboração” com que comecei o texto, é óbvio que os comediantes se importam com como a plateia reage – mas ao contrário de alguém que não é um profissional, eles terminam o show, e, se forem realmente tarimbados, sofrem alguns minutos ou horas com a experiência, mas a esquecem completamente no dia seguinte, quando precisam se apresentar de novo. Não sei quanto a vocês, mas eu ainda ocasionalmente remoo situações vexaminosas por que passei 20 ou 30 anos atrás.
Também os músicos de jazz, os melhores entre eles, não são aqueles que não erram – um músico é capaz de apreciar o deslize, ou pelo menos o próprio músico sabe como ele, por exemplo, saiu da escala. Mas justamente os melhores entre os melhores são aqueles que tocam livremente, com muitos “erros”, que eles miraculosamente conseguem integrar com o que eles fazem logo depois. E, novamente, a expectativa da plateia num show de jazz não é ver músicos seguindo uma estrutura sem erros – mas exatamente a emoção é vê-los assumir grandes riscos – tocar sem rede de proteção.
Portanto, nossas pequenas obsessões com as coisas se darem como queremos que elas se deem, ou mesmo que nos comportemos como esperávamos nos comportar, ou, pior, nossas expectativas quanto a nos encaixar no mundo (ou não nos encaixar), são todas infundadas. Em pouco mais de 100 anos a maioria de nós não vai ser sequer lembrado, então por que nos preocupamos com metas arbitrárias que nos autoimpusemos?
Além disso, nosso desinteresse e despreocupação com aproveitar bem o que temos é verdadeiramente criminoso. Acreditamos que, de certa forma, as coisas estão garantidas, e ao ouvirmos mensagens positivas sobre transformar o fracasso numa espécie de vitória, o erro numa espécie de acerto, ficamos animados. Gostamos de receber tapinhas nas costas e sermos tranquilizados quanto a tudo, invariavelmente, estar bem, acabar bem, poder ser reinterpretado – virar um mundo de Poliana. Ou, se não está, ligamos o foda-se e pronto. Esse tipo de covardia é que acaba com tudo de bom no mundo.
Essas duas atitudes extremas são exatamente o que impedem que reconheçamos o erro e sejamos capazes de trabalhar com ele. E a palavra “trabalho” aqui é relevante: gerar interesse além dos automatismos ou das garantias (todas infundadas), e algumas vezes simplesmente estar presente, já é um trabalho e tanto. Não que precisemos ficar cansados só por pensar nisso: o melhor é encarar como uma responsabilidade pessoal de oferecer o que se tem de melhor e ao mesmo tempo em que se reserva a independência equânime de não se importar com o que os outros pensam. Essa é a confusão sutil: algumas pessoas pensam que colaborar é se coadunar com a expectativa alheia. Não é tão fácil assim, é necessário ser cético com (examinar sem viés) tanto o que se pensa e com quanto o que os outros pensam, igualmente.
Conselhos abstratos sobre como encarar a própria cognição e levar a vida podem parecer atraentes, mas a honestidade não é fabricável. Em todo caso, a única coisa que permite que usemos noções de liberdade individual e autodeterminação, colaboração e coletividade, erro e acerto, como justificativas para nossa própria podridão interior é viver em descompasso consigo mesmo e com os outros.
Uma vez que você não se deixa enganar – por si próprio, pelas pressões dos outros – e aceita a responsabilidade, e o trabalho, que tem pela frente, as dificuldades naturalmente se tornam apenas mais uma coisa com que se tem que lidar. Não é preciso suspirar – por inspiração ou angústia. A transparência radical para consigo mesmo e para com os outros é a única garantia.
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