Kurosawa pode realmente ser um grande diretor, mas a acusação usual é a de que ele fez cinema japonês “para exportação”, facilitado e palatável ao gosto ocidental. Já o cinema clássico Japonês, cujo maior expoente é Yasushiro Ozu, com seus enquadramentos fixos de 20 minutos sem cortes, é realmente um gosto adquirido.

A Nuberu Bagu, a Nouvelle Vague japonesa, por outro lado, segue refrescante, contundente e mais moderna e relevante do que o próprio cinema de vanguarda europeu ou norte-americano do mesmo período.

Outra dimensão de cinema

Dodes’ka-den (1970) | Akira Kurosawa

Conheci o cinema japonês em mostras realizadas pela embaixada japonesa aqui em Porto Alegre. Por vários anos elas ocorriam com grandes filmes como Sanshō Dayū’ (“O Intendente Sansho”) e Seppuku (“Harakiri”) — que tive a sorte de conhecer numa tela de cinema. Ocasionalmente, sem grande alarde, passavam um ou outro da Nuberu Bagu, principalmente de Shohei Imamura, ou algum filme de terror altamente estilizado dos anos 60 como Kwaidan que tem relações com o gênero – mas antes da internet eu nem desconfiava que houvesse um nome ou que fosse um movimento artístico particular, muito menos desconfiava do volume de filmes bons produzidos no Japão nessa época.

Realmente não busco desqualificar gente como Kurosawa, Ozu ou Mizogushi – e mesmo o tão conhecido primeiro da lista tem muitos filmes que pouca gente aqui no Brasil viu, a começar por Rashômon, um dos melhores filmes já realizados. Quando por acaso se encontra um cinéfilo que viu Seppuku, Dodes’ka-den ou Tôkiô Monogatari (“Era uma vez em Tóquio”) já dá para regozijar muito. Ora, até se encontramos alguém que viu Sonhos ou Rapsódia em Agosto já é uma glória, já que o comum é alguém citar anime (nada contra, nada a favor também) ou algo como Ringu — e, se a pessoa é muito, muito hip, ela talvez solte o nome de alguém como Takashi Miike.

Agora, quando estamos falando da Nuberu Bagu, trata-se de outra dimensão de cinema. Peguemos, para começar, Dodes’ka-den(“Cê-gosta-disso?” — algo que é repetido por um personagem deficiente mental e soa como a onomatopéia do maquinário de uma locomotiva, mas a que no Brasil deram o título inexplicável de “Dodeskaden – O caminho da vida”), um melodrama em cores psicodélicas sobre um favelão japonês, e cujo fracasso levou Kurosawa a uma séria tentativa de suicídio: esse filme, pela temática e algo pelo experimentalismo, soa quase como uma incursão tardia do veterano Kurosawa pela Bagu — embora estritamente falando Kurosawa nunca seja associado a ela.

Os japoneses não gostaram. Kurosawa fazia filmes de época, do glorioso passado japonês, ou sofisticados dramas urbanos de classe média: o japão não queria ver suas favelas em tecnicolor. E Kurosawa corta os pulsos em uma banheira, felizmente é descoberto a tempo, e só volta a filmar (na Rússia!) cinco anos depois.

Assim, esse fracasso e essa tentativa de suicídio são indicativos de algo maior: o próprio Japão que Kurosawa tão bem representou perante o mundo é sim um país de sofisticação centenária, e que conhece o sofrimento de perto, tanto por questões internas (o militarismo insano do séc. XX) quanto externas — mas que, em plena recuperação econômica (que culminaria só nos anos 80) aparentemente se recusava a encarar seus problemas sociais. O mais óbvio sofrimento externo é o fato de que foi único lugar que tomou duas bombas atômicas na cara, em populosos centros urbanos.

Mas também, se conhecemos algo da cultura japonesa, entendemos que a perda da guerra e a assimilação forçada de valores estrangeiros, incrivelmente acelerada com a vitória Norte Americana, não foi nada fácil para uma cultura tão tradicional, dotada de infladíssimo orgulho étnico. Em outras palavras, a americanização do Japão foi uma das mais agudas tensões sociais do pós-guerra. E não que essa mescla, por mais inexorável e indigesta que tenha sido, não tenha produzido alguns bons frutos.

Essa cinematografia da Nuberu Bagu, que começa nos anos 50 e vai terminar só lá nos 70, por exemplo, é um dos aspectos mais interessantes da juventude japonesa culta violando as regras tácitas da xenofobia tradicional e ao mesmo tempo aculturando os mesmos elementos transgressores que tumultuavam a própria América do Norte naquele momento. A saber, a contracultura, os beats, a luta pelos direitos civis, o respeito e interesse pelas povos e culturas aborígenes, a hiperestilização e experimentação na arte. O Japão começa a fazer um cinema radical em contraste com quaisquer moldes então existentes do mundo, e alguns elementos seguem ainda muito relevantes e impressionantes hoje.

Quem quiser assistir a esses filmes, na maior parte das vezes, terá que se contentar com uma legenda em inglês ou espanhol, e com pagar impostos altíssimos para trazer um blu-ray da Criterion do exterior, ou, mais diretamente, precisará procurá-los em sites de torrent.

A mulher de areia

O grande Suna no Onna (“A Mulher de Areia”). Que união poderia ser mais feliz do que a de Hiroshi Teshigahara (diretor) e Kôbô Abe (escritor)? Este é o filme quintessencial da Nuberu Bagu, e ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1964, além de ser a primeira indicação de um diretor japonês ao Oscar.

Suna no Onna
Suna no onna (1964) | Hiroshi Teshigahara

Conheci-o através do comentário de uma senhora num fórum sobre os seminários de Louca Sabedoria de Chögyam Trungpa Rinpoche – lá ela contava que Rinpoche havia exibido o filme durante o seminário. Fiquei interessadíssimo e foi aí que nasceu meu colecionismo por filmes japoneses, principalmente da Bagu.

É um filme que mistura erotismo e essa questão de um entomologista (morador de Tóquio e da classe educada, portanto) que acaba num relacionamento com uma mulher selvagem que vive nas dunas, com uma diferença entre eles que não chega a ser nem de classe, mas de mundos. O filme tem uma fotografia assombrosa e inesquecível. (Um filme brasileiro, Casa de Areia, copiou, em 2005, até onde sei sem créditos e descaradamente, muitos elementos de Suna no Onna – e não é um filme totalmente ruim por si só.)

A face do outro

Tanin no kao (1966) | Hiroshi Teshigahara

Teshigahara dirigiria ainda outro grande filme da Nuberu Bagu: Tanin no kao (“A face de outro”), que é uma espécie de ficção científica surrealista (conjunto que na literatura curiosamente também é chamado de “nova onda”) na qual um sujeito após queimar muito profundamente o rosto faz o transplante do rosto de outro em si (coisa que recentemente se tornou possível!). Mas isso não o deixa muito tranquilo com sua identidade. Por exemplo, ele fica meio cabreiro de fazer amor com sua própria mulher: se ela gostar do novo rosto, ela o estará, no fundo, traindo. Novamente a fotografia em preto e branco é profundamente marcante.

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Nos anos posteriores à Nuberu Bagu ele fez pelo menos dois outros filmes excelentes: um documentário sobre o arquiteto espanhol Antonio Gaudí, que é talvez o melhor documentário sobre arquitetura já feito, e Rikyu, a trágica história do mestre zen que inventou a cerimônia do chá: o filme é a mais acurada representação cinematográfica da arte japonesa no período Edo. Teshigahara foi ele mesmo um mestre numa arte tradicional do Zen Budismo, o arranjo de flores, e o cinema era seu hobbie, sua segunda arte.

Os pornógrafos

Erogotoshi-tachi yori: Jinruigaku nyûmon (1966) | Shôhei Imamura

Erogotoshi-tachi yori: Jinruigaku nyûmon (“Os Pornógrafos: introdução à antropologia”). A maioria dos cinéfilos conhece Imamura por Narayama-bushi kô (“A Canção de Narayama”) ou por Kuroi ame (“Chuva negra”) – dois filmes excelentes (Kuroi Ame está junto com Rashômon no meu top 10 melhores filmes de todas as eras e culturas), mas são posteriores à Nuberu Bagu. De sua manufatura e da Nuberu Bagu temos o delírio da fotografia voyeurística dos Pornógrafos.

Trata-se de um Nelson Rodrigues japonês, um olho que oscila entre o moralismo e o voyeur, que condena e ao mesmo tempo permanece fascinado e erotizado pela sacanagem. Não tem nada “demais” no filme, não é um filme que excite (pelo menos ao gosto usual, ou para quem espera algo mais gráfico), mas toda a questão dos proscritos em Tóquio, da tragédia absurda de uma obsessão que objetifica a mulher e transforma os mais degradados atos sexuais em comodities está toda lá.

Ao contrário de A face de outro e Mulher de areia, este é um filme mais difícil de assistir: é mais longo, menos compreensível, é difícil a primeira vista saber quem é quem, eles surgem todos naquela politicamente incorreta semelhança facial (que é nossa deficiência étnica em reconhecer rostos de outras etnias)… mas a fotografia é, novamente, impressionante. Exigiu-me umas três sessões para entender a trama e reconhecer bem os personagens, mas valeu cada minuto. Destaque para o primeiro marido da mulher do pornógrafo. Após falecer, renasceu como o peixe de estimação da família, e está claramente incomodado com aquela decadência toda — em alguns instantes a ação é vista na primeira pessoa do peixe.

Os Pornógrafos guarda também uma similaridade de família (em mais de um sentido) com o Bizita Q (“Visitante Q”), de Takashi Miike. O filme feito em 2001, numa safra onde a Nuberu Bagu já está explicitamente esquecida, por mais que permaneça subliminarmente influente, é provavelmente o mais repulsivo (sexualmente) filme não totalmente explícito já feito, ainda que, no fundo — lá onde um moralista convencional talvez nem consiga chegar — também acabe extremamente moralista — e não só isso, até mesmo é um anti-Teorema de Pasolini: não só é moralista como é uma história que tem uma moral.

O profundo desejo dos deuses

Kamigami no fukaki yokubo (1968) | Shôhei Imamura

Outro filme interessantíssimo de Imamura é Kamigami no fukaki yokubo (“O profundo desejo dos deuses”) que novamente explora o tema do choque do japonês educado e moderno com a população aborígene, incestuosa e selvagem, de uma das ilhas sendo colonizada. O tratamento não é politicamente correto nem colonizador. O que vemos é o choque de mundos em um microcosmo sociológico do Japão.

Este é o primeiro filme colorido da Nuberu Bagu que estou indicando, e a fotografia ganha aqui outra dimensão, quase documental.

Sob as cerejeiras em flor

Sakura no mori no mankai no shita (1975) | Masashiro Shinoda

Sakura no mori no mankai no shita (“Sob as cerejeiras em flor”), de Masashiro Shinoda, é tardio (1975), mas seu terror psicológico politizado é pura Bagu. Num período não identificado do Japão clássico, um ladrão captura e estupra a esposa de um senhor feudal, apenas para descobrir que ela é muito mais depravada e louca do que ele. A ideia toda vem da corrupção estética que a beleza assombrosa das cerejeiras florescendo produziria: quem quer que ficasse num campo de cerejeiras na primavera, enloqueceria. Mas a loucura da tensão entre classes, e entre homem e mulher, estão sempre presentes. A fotografia colorida, belíssima, tradicional – ultrajaponesa, é contrastada com o horror quase gore e humorístico, verdadeiramente assustador e ao mesmo tempo engraçado, e um inacreditável subtexto subversivo.

Morte por enforcamento

Kōshikei | Nagisa Oshima (1968)

Talvez o mais conhecido representante da Bagu, embora não pelo nome, seja Nagisa Oshima, que dirigiu O Império dos Sentidos… um filme pouco representativo no meu entender. Senão pelo fato de ser um filme de sexo explícito com cara de filme de arte, há tanta coisa melhor do próprio Oshima, como o fantástico Kōshikei (“Morte por enforcamento”), que examina o racismo japonês pelos coreanos, mas que não para aí… é um daqueles filmes holográficos, que descortina miríades de novos sentidos a cada vez que se assiste. Advirto, novamente, que esse não é um filme tão fácil ou agradável, mas é excelente.

Enfim, eu poderia recomendar muitos outros filmes, mas é um pouco sem sentido, porque mesmo eu tenho dezenas de filmes a descobrir na Bagu. Faz dez anos que cavoco filmes japoneses desse período e desse grupo de diretores — Imamura, Teshigahara, Shinoda, Oshima e também Susumu Hani, Koreyoshi Kurahara, Yasuzo Masumura, Yoshishige Yoshida, Seijun Suzuki, Kō Nakahira e Kaneto Shindo, alguns com dezenas de bons títulos — e não cesso de me surpreender.

É um poço inesgotável de um estranhamento tão particular, e de uma peculiaridade tão japonesa e ao mesmo tempo tão própria da modernidade (nem inserirei o “pós”, nem inserirei o “globalizada” — mas varre tudo no século XX-XXI) que a mim é absolutamente irresistível.

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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em <a>tzal.org</a>."