Talvez a melhor pergunta a ser feita, ao invés de “isso é de menina ou menino?”, seja “isso é de adulto ou de criança?”

Recentemente, Mari Lopes, mãe de dois meninos, dividiu em seu perfil no Instagram algo que aconteceu com o Sebastião, seu filho de 6 anos, que desde os 3 anos de idade, gosta muito do filme “Frozen”, uma animação muito conhecida dos estúdios Walt Disney que tem como protagonista a personagem Elsa, a Rainha das Neves:

“Ele pedia pra brincar de Frozen e pedia pra usar fantasia da Frozen. No início isso me gerou um desconforto. Não um desconforto sobre o pedido dele, mas uma insegurança pensando no que os outros familiares poderiam pensar”. 

Foi então que na preparação para o Carnaval da escola deste ano, Sebastião falou para a sua mãe que ele queria ir fantasiado de “Frozen”, se referindo especificamente a personagem Elsa. Preocupada em como isso poderia repercutir na escola, a mãe passou a semana toda tentando convencer o filho a ir fantasiado de Buzz Lightyear, numa tentativa de protegê-lo de comentários e questionamentos, mas ao mesmo tempo buscando uma forma de colocar na balança a vontade da criança.

Ela se via em um lugar muito complexo, por que, afinal, o único motivo pelo qual ela não deixaria ele ir fantasiado de “Frozen” era a opinião das outras pessoas. Mari encarava o impasse com muita tristeza. Para o pequeno Sebah, era apenas uma fantasia divertida, uma brincadeira de Carnaval, independente de serem personagens femininas ou masculinas.

Como Sebastião é um menino com cabelo comprido, ele e a mãe já ouviram diversas vezes na rua que ele “parecia uma menina”. E Mari conversa sempre com ele sobre isso, perguntando se ele não prefere cortar o cabelo. Mas ele gosta de ter o cabelo grande e diz não se importar com o que as pessoas dizem. Quando as pessoas o tratam como menina, ele responde dizendo “ eu sou o Sebastião”. De certa forma, ele já entendeu que as pessoas se incomodam, mas ele só está querendo ser uma criança. 

O seu cabelo não faz mal a ninguém e não define a sua sexualidade nem seu gênero. Além disso, vários homens usam cabelo comprido e isso é apenas uma característica humana, assim como altura, peso ou tamanho do pé, por exemplo. Por que as pessoas ainda se incomodam tanto com isso?


Mari com os seus dois filhos: Sebastião e Vicente

Acolhendo a liberdade de ser criança…

Depois de muita insistência e tentativas de fazê-lo desistir, Mari e o pai de Sebah viram que não fazia sentido, nessa ocasião, não atender um pedido tão sincero e inocente de uma criança que está querendo apenas se divertir como todas as outras crianças. Eles partiram do pressuposto que uma fantasia não tem a ver sobre ser coisa de menino ou coisa de menina, trata-se de coisa de criança.

A mãe resolveu alertar o filho de que, assim como falavam do seu cabelo comprido, era possível que as pessoas fizessem comentários sobre a sua fantasia. Além disso, ela também foi até a escola conversar e preparar as professoras, sabendo que, até mesmo na escola, infelizmente, haveria um grande desconforto.

E como foi a experiência?

Voltando para casa, Sebastião contou para a sua mãe que os coleguinhas não só  não brincaram com ele, por que achavam errado ele estar com aquela fantasia “de menina”, como também cuspiram nele.

A culpa é dos pais que deixaram ele ir vestido assim?

Quando Mari contou em suas redes sociais sobre as violências que o seu filho vivenciou, e também compartilhou que tem se construído enquanto uma mãe que quer criar meninos livres dessas caixinhas de “coisa de menino” ou “coisa de menina”, focando apenas em “coisas de criança”, ela vem sendo atacada nas redes. Dizem que ela está incentivando o Sebastião a ser gay ou a ser mulher:

“Não faz sentido esse tipo de comentário machista e homofóbico disfarçado de opinião e boa intenção. Recentemente algumas pessoas na internet diziam que eu deveria morrer. Alegavam: “onde já se viu uma mãe mudar a cabeça do filho?”

Muitas pessoas dizem que só querem proteger o Sebastião, e que por isso ele deveria fazer “coisas de menino” e brincar com “coisas de menino”, para não ser vítima de violência. Mas com esses conselhos, que até podem ter um fundo de boa intenção, não percebemos que também é violento podar e anular o que nossos filhos são, suas preferências e suas vivências. Focamos em uma perspectiva na qual a criança é o problema e ela tem que mudar, e os pais que tem que direcionar e impor essa mudança, mas esquecemos que a lógica é outra: é a sociedade e os adultos que têm precisado mudar a sua visão de mundo e se livrar de seus preconceitos enraizados.

O que é um absurdo e o que é normal para uma criança?

Ao mesmo tempo que muitos acham um absurdo que uma criança possa usar uma fantasia de personagem feminina, Mari relata que também houve uma ocasião em que um vizinho da família perguntou quando o Sebastião iria cortar o cabelo e achar uma “namoradinha”, pois ele “já estava na idade”. É importante lembrar que o pequeno Sebah tem apenas 6 anos. Como a mãe dele já tinha conversado sobre isso, o próprio Sebastião respondeu: “Criança não namora!” e saiu de perto deste homem.

É preocupante como muitas pessoas normalizam a inserção precoce de crianças em “namoros” (ao mesmo tempo que criticam que as crianças possam ver outras formas de ser e se relacionar no mundo que não seja o padrão – nos EUA, por exemplo, querem proibir que crianças vejam contações de histórias por drag queens). Definitivamente, crianças não namoram, crianças precisam de tempo para serem crianças, para brincadeiras, para vestirem suas fantasias livremente e para um saudável desenvolvimento físico e emocional, respeitando cada etapa de suas vidas.

Ainda é muito comum ouvirmos falas como: “o meu meninão vai ter muitas namoradinhas”, o que nos aponta que desde cedo os meninos são estimulados a serem garanhões e a iniciarem uma vida sexual precoce. Esse exemplo do vizinho questionando o pequeno Sebastião nos mostra que a infância já é marcada por expectativas de sexualidade e pela divisão dos papéis de gênero que tanto estamos tentando nos desvencilhar.

Esse tipo de comentário nos traz uma reflexão importante que Mari apontou:

“É esse tipo de comentário que os adultos fazem na tentativa de ficar o tempo todo provando que o menino “é homem”. Ele tem 6 anos, ele não tem que pensar em namorar.”

Parece haver uma tendência das pessoas em querer tratar os meninos como se já fossem homens adultos. Essas tentativas de controle das crianças tem grande potencial de deixar marcas negativas para a vida toda:

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“Para o menino é dito já cedo: “você não pode chorar, quem chora é menininha, você não pode fazer isso por que é coisa de menina”. Então se nós adultos não conseguirmos nos rever e construir outros caminhos: quantas infâncias vão deixar de ser infâncias por que, o tempo todo, está lá o adulto falando que a criança não pode fazer aquilo só por que dizem que isso é de menina e isso de menino?”

Estamos criando o mundo desde pequenos

Quando paramos para observar a divisão das brincadeiras como “de menino” e de “menina” percebemos que há uma espécie de treinamento de gênero nas entrelinhas: 

Por que achamos que se um menino brincar de casinha e boneca ele será “menos menino”? Se as meninas brincam de ser mãe com as bonecas, os meninos não podem brincar de ser pai e brincar de fazer comidinha para o filho? Por que achamos que se uma menina brincar de carrinho ou super herói ela será “menos menina”? As meninas não podem sonhar em viajar e fazer grandes contribuições ao mundo através de suas potências criativas? 

As brincadeiras ajudam a desenvolver habilidades importantes para vida, restringi-las mostram nossas inseguranças e limitam nossas crianças:

“O fato de nós, adultos, incentivarmos as crianças a certas brincadeiras, e proibirmos outras, mostra como brincar é provocador. Essas proibições, em certas situações, podem ser o reflexo da nossa insegurança, uma espécie de medo que as crianças se tornem o que elas quiserem. Que os meninos expressem seu afeto, e as meninas, a sua raiva”  – Ana Rita Mayer – “O que você deixou de brincar na sua infância?”

É de menino ou de menina? 

Nós podemos substituir essa pergunta por essa:  

É de criança ou de adulto? 

Essa é uma excelente reflexão que Mari fez na criação dos seus filhos. Aqui sim temos uma pergunta que precisa ser pensada com seriedade e que limites precisam ser bem estabelecidos pela segurança física e emocional das crianças. Essa é uma divisão que realmente importa e que terá impacto sobre a criação do seu filho, independente do gênero.

É preciso sempre lembrar que brincadeiras não tem a ver com gênero ou sexualidade, mas sim com infância: toda criança pode brincar do que quiser. Pensar no fim do machismo, da homofobia e do racismo é também pensar em infâncias livres, nas quais, desde cedo, as crianças aprendem sobre liberdade, responsabilidade, afeto, respeito e acolhimento.


Sebastião se preparando para o Carnaval

Precisamos respeitar as muitas formas de ser criança

Temos uma visão de que as crianças não tem vontade própria ou que suas vontades devem ser sempre repreendidas para não se tornarem mimadas. Vemos as crianças como seres incapazes de compreender e conversar. Mas essa é uma visão limitada sobre a infância. Podemos sim acolher determinadas vontades, validar os seus olhares e os seus sentimentos, para que elas possam se tornar adultos que também sabem olhar para si com cuidado, reconhecendo o que sentem e validando suas próprias escolhas.

Isso não quer dizer que pais e mães devem atender a todas as vontades de uma criança, mas é possível ter um olhar sensível para o que elas expressam. As crianças são capazes de entender muitas coisas, nós é que menosprezamos tal capacidade.

Mari nos contou que o método que ela tem usado para mediar a relação entre permitir e proteger o seu filho, quando ele pede algo que não é visto como “de menino”, está focado em conversar. O caminho, segundo ela, é fortalecer essa criança para que ela desenvolva a autoconfiança. E dar sempre a possibilidade de ela não passar por essas questões complicadas de julgamento, oferecendo outras alternativas. Entretanto, também é fundamental não subestimar ou menosprezar o que as crianças sentem, pensam, dizem ou solicitam. 

Sebastião – O Menino Frozen

Por vários motivos, possivelmente, você não poderá dar tudo ou permitir tudo ao seu filho, mas há coisas que você precisa compreender que são fundamentais para ele. Nesse momento de decisão, será preciso que você olhe pela ótica de ser criança e não pela ótica de adulto.

Por exemplo, quando voltamos a história de Sebah, apesar da violência dos colegas, ele lidou bem com isso. Ele foi como queria e soube administrar a rejeição, pois ele estava defendendo algo que fazia sentido para ele. Qual violência seria maior e mais traumática para criança? Os comentários maldosos dos colegas ou a proibição vinda dos pais, que poderia ser interpretada como “tem algo de errado em você” ou  “ você não pode gostar disso que gosta e nem mostrar isso pros outros”.

Mari conta que nos diálogos com o pequeno Sebah, sempre há uma tentativa de oferecer outras possibilidades, já que ela sabe que ele vai sofrer. Então sempre há uma tentativa de negociação. Mas também há sempre uma dor por ser muito injusto podar uma criança por causa do incômodo de outras pessoas. De certa forma, é como se ela tivesse que ensinar para o seu filho que algo inofensivo, como ser uma criança livre, incomoda as pessoas. Por isso, é muito importante que a gente compreenda que existem muitas formas de ser criança e que todas elas devem ser acolhidas e respeitadas:

“Todas as vezes que ele sai de casa ou acontece esse tipo de coisa, eu tento sempre enfatizar onde é o porto seguro dele, por que se ele não tiver um porto seguro, ele não vai conseguir desenvolver coragem pra se impor e falar: eu posso! Eu não tô pedindo pra todo mundo mandar o filho de Frozen pra escola. Eu só tô pedindo para que as pessoas ensinem dentro de casa que tá tudo bem o outro ser diferente.”

Por fim, a Mari deixa uma mensagem para todas as famílias:

“Escute o seu filho. A gente já cresce ouvindo que meninos não podem fazer certas coisas, mas meninos podem sim, podem chorar, podem sentir, podem verbalizar o que estão sentindo. Isso é algo que qualquer pessoa pode fazer: se sentir seguro para poder falar o que está sentindo, mas isso é uma coisa que quase não acontece ou não é oferecido para as crianças que são meninos. A gente precisa aprender a escutar o que o nosso filho está dizendo e sentindo: desde um “quero usar um cabelo comprido a qualquer outra coisa que seja importante para ele.”


publicado em 24 de Março de 2023, 18:25

Andrio Robert Lecheta