Essa semana o QG do PapodeHomem amanheceu sem campainha. Simplesmente não tocava e o portão, elétrico, embestou e também não abria à distância. No analógico da coisa, antes do almoço de segunda-feira já se tornou um fardo ter que se locomover, no meio dos pensamentos de escrita, até o portão pra abrir pra alguém. Um pedido de socorro e, ainda de tarde, o Seu Nelson apareceu.

É um daqueles tios que vivem alguns anos no passado, anda de calça bege e camisa azul maior que ele pra poder acoplar com tranquilidade a barriga (nada muito exacerbado, apenas aquela marca protuberante na altura do abdômen). E cá veio ele consertar a campainha e o portão.

A parte elétrica foi um percalço facilmente ultrapassado. Restou o aviso barulhento de que alguém chegou ao portão.

O seu Nelson é um imperturbado. Sempre com um sorrisinho no rosto adornado por cabelos brancos e um óculos simples de Geppetto. Caminha passivamente pra fora, olha os mecanismos fatiando na cabeça já engastalhada cada peça, cada movimento elétrico/eletrônico/antropofágico que faria com que tudo — sob sua responsabilidade — se resolvesse. Calmaria em forma de velhote.

Final do dia, ainda com trabalho não concluído, ele foi embora prometendo voltar no outro dia. E assim o fez.

Hoje, antes mesmo de eu chegar pra mais um dia de labuta e ele já estava por aqui, fuçando em algo, remendando coisas, fazendo perguntinhas. No almoço, chegamos a conclusão de que o Seu Nelson é bem surdo. Isso porque, interruptamente, ele sai tocando a bendita campainha, ouve o som aterrorizante e caminha sereno pela casa. Repete o procedimento, anda mais um pouco. Faz tudo de novo. Olha em volta, pergunta se alguém sabe onde fica a campainha. Não onde se toca, mas onde o barulho começa. Ninguém sabe ao certo. Resta o procedimento contínuo de procura solitária.

Pega uma escadazinha de nem dez degraus, anda olhando meio pro alto, a molecada corre pros fundos do QG e dá risada. Não dá pra se concentrar no trabalho com uma figurinha dessas zanzando tão tratado.

O empecilho vira o escape cômico da tragédia do dia. O Seu Nelson ganhou a porra toda, zerou a turma todinha.

Leia também  "Com uma pequena ajuda dos amigos," uma década de PapodeHomem!

Nesse exato momento ele está por aqui, cutucando a campainha pra descobrir de onde vem o berro incômodo. Ele não tem pressa, ao contrário de todos os trabalhadores jovens desse site metido a machão. Urgência definitivamente é uma palavra riscada há algum tempo do vocabulário arcaico desse cidadão ímpar.

Imagino ele indo embora, já escuro, caminhando pelas ruas aqui de Perdizes repensando os caminhos da eletricidade, desde o prensar do dedo até o "tzééééé" que tremula na cabeça de todo mundo. De onde vem, pra onde vai. Se ele não descobrir hoje, amanhã ele volta mais uma vez e, se precisar, de novo. Fico botando na cabeça as imagens dele voltando pra casa — ele poderia ser um senhor que mora só — pra esquentar a janta, não sem antes tocar a campainha da própria residência pra se certificar que ainda pode, que ainda consegue. Não pra provar algo pra si mesmo, mas apenas porque se acostumou.

Acostumado. O Seu Nelson pode ser daqueles velhinhos que, ao se deitar, tentam mapear sua própria trajetória pra descobrir, se puder, onde foi que podia ter sido melhor, que podia ter virado um relojoeiro, profissão quase extinta, mas de um renome grande, de uma pomposidade que não se vê mais.

Antes de finalmente apagar a luz do abajur do quarto, já de pijamas, aposto que ele deve contrariar seus anseios antigos e afirmar que não daria certo pensar em ser relojoeiro.

"Acho que meu tempo já passou."

Dorme o sono dos justos pra, no outro dia, fechar o ciclo que iniciou aqui no QG.

Tá maluco, Seu Nelson! Foi o senhor mesmo que mostrou pra gente que o tempo não passa, se assim a gente quiser.

Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados