Nêgo Bispo foi o primeiro de sua família a ter acesso à alfabetização e é conhecido por seus artigos, poemas e por seu livro “Colonização, Quilombos: modos e significações”.

Ele já teve atuação como liderança quilombola na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). A Enciclopédia de Antropologia da USP destaca o seu trabalho político importantíssimo relacionado ao quilombo, seus símbolos, modos de vida, crenças e territórios tradicionais.

Os ensinamentos de Nêgo Bispo partem de uma lógica que faz um movimento contrário ao pensamento colonial.  Essa ideia de pensamento colonial pode ser entendida como todas aquelas influências culturais trazidas pela Europa para o continente americano, que moldaram a nossa forma de ver e nos relacionar com o mundo, o outro e a natureza.

A partir da colonização, todos os modos de vida dos povos originários das Américas eram combatidos e substituídos por modos de vida europeus. Portanto, valores como a exploração da natureza e o cristianismo vieram “dentro” das caravelas, pois não eram uma realidade por aqui. 

Até mesmo o funcionamento de gênero e sexualidade se dava de outra forma antes da colonização. E tudo isso, mesmo depois de tanto tempo, influencia as nossas vidas até hoje, ainda que não percebamos com tanta facilidade. Nêgo Bispo trabalha, justamente, apontando caminhos para que possamos romper com todas essas lógicas coloniais e também denuncia como elas funcionam.

Para Nêgo, a solução dos problemas sociais não serão resolvidos olhando para aquilo que chamamos de “sociedades desenvolvidas”, que tratam-se, geralmente, de sociedades europeias que nos colonizaram. O caminho para construirmos soluções coletivas, na visão dele, está no movimento de olharmos para o quilombo enquanto exemplo de uma vivência compartilhada e que respeita a natureza.

Mas você sabe o que é um quilombo?

Durante o período de escravidão no Brasil, muitos escravizados se revoltavam, faziam rebeliões e fugiam das fazendas. A partir disso, foram surgindo comunidades temporárias e permanentes formadas por essas pessoas. Então, essas comunidades passaram a ser centros de resistência desses escravizados, nos quais eles produziam o seu alimento e os seus próprios modos de vida, sem exploração e violência. Esses lugares receberam o nome de quilombo e seus moradores eram então os quilombolas. Atualmente, existem cerca de 4 mil comunidades quilombolas no Brasil.

“Hoje as mais importantes universidades do Brasil estão chamando os quilombolas e indígenas para discutir cosmologia, modos de vida, contracolonidade. Quem imaginou que, um dia, um lavrador quilombola, Nêgo Bispo, nascido no Piauí, teria um livro, escrito a partir de memórias ancestrais, na ementa de universidades do Brasil? Quem imaginou que um lavrador estivesse fazendo três lives por semana pra discutir confluências, cosmofobia, pensamento circular, biointeração, saberes orgânicos?! Nesse momento, nós, quilombolas, estamos presentes não como pessoas que devem ser ajudadas, mas como pessoas que ajudam. Hoje nosso modo de vida é referência”.

Nêgo Bispo – Entrevista Revista Revestres

A relevância e profundidade das discussões de Nêgo Bispo são tão potentes que o seu livro está em ementas teóricas das disciplinas de Antropologia do Museu Nacional, está também no curso de Geografia e Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no de Psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), Direito e Artes na Universidade Federal da Bahia (UFBA), no curso de Matemática na Universidade Federal de Goiás e em várias outras.

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Os seus saberes extrapolam as normas acadêmicas e se concretizam em outras formas e linguagens, até mesmo em poemas. O seu livro “Colonização, Quilombos: modos e significados”, por exemplo, é pensado como um rio, trazendo os relatos de uma cultura quilombola que se construiu através da oralidade: histórias que iam sendo passadas de uma geração para a outra através da fala. Inclusive, esse funcionamento faz com que os quilombolas valorizem os idosos e as crianças, pois eles simbolizam o que Nêgo chama de “começo, meio e começo”: a herança cultural que passa deste idoso, para o seu filho e recomeça nos seus netos. O pensamento quilombola não tem fronteira, extremo ou posse. É compartilhado.

A sua poesia também é afiada e construída a partir da história, dor e resistência do seu povo:

Fogo!… Queimaram Palmares, Nasceu Canudos

Fogo!… Queimaram Palmares,

Nasceu Canudos.

Fogo!… Queimaram Canudos,

Nasceu Caldeirões.

Fogo!… Queimaram Caldeirões, 

Nasceu Pau de Colher.

Fogo!… Queimaram Pau de Colher…

E nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando.   

Porque mesmo que queimam a escrita, 

Não queimarão a oralidade.

Mesmo que queimem os símbolos, 

Não queimarão os significados.

Mesmo queimando o nosso povo

Não queimarão a ancestralidade.

Nego Bispo

Antônio Bispo dos Santos – Quilombo Saco-curtume em São João do Piauí/PI

Há na fala e em toda a produção de conhecimento de Nêgo Bispo uma incrível relação respeitosa com todas as formas de vida, sem hierarquia e sem colocar o homem como centro do mundo ou como aquele que pode dominar tudo à sua volta:

“Toda vez que você for pegar o boi, peça por favor. Mesmo que ele não entenda, é você quem tem que entender. É você quem precisa do boi e não ele de você. Diga: boi, por favor, me ajude a arar a terra; boi, por favor, me ajude a puxar o engenho”. Antes de montar no cavalo, tio Norberto dizia: “Meu cavalo velho, por favor me desculpe, eu andei muito com meus próprios pés, hoje preciso de sua ajuda”. É assim o povo quilombola”, relata sobre os aprendizados recebidos do seu tio Norberto.

Nêgo Bispo – Entrevista Revista Revestres

Encerro esse texto com um pequeno poema de Nêgo Bispo que nos ajuda a pensar como a colonização ainda está tão impregnada em nós, a ponto dela ter construído em nosso pensamento as noções de belo e feio, certo e errado, inferior e superior, dominador e dominado. Nêgo, além de construir  fortes críticas ao saber enquanto mercadoria e produto, ele nos aponta a necessidade do saber ser coletivo e compartilhado. E também nos fala que a luta política, para ser eficaz, precisa de poesia. 

Esse breve poema resume perfeitamente o pensamento de Nêgo Bispo sobre lutarmos contra toda a herança colonial que ainda gira as engrenagens da sociedade e dos nossos pensamentos:

“E escrevemos mal ortografado

Quando nós cantamos desafinando

E dançamos descompassado

Quando nós pintamos borrando

E desenhamos enviesado

Não é por que estamos errando

É porque não fomos colonizados”.

Viva Nêgo Bispo!!!!!!!

sitepdh

Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.