Uma resposta ao artigo “A evolução do cafajeste (3): É da nossa natureza trair?”, de Atila Iamarino.
Antes de tudo quero dizer, como leitora, que fico muito honrada por ter meu texto publicado aqui no PdH. É ótimo saber que vocês prezam a necessidade de buscar diversos pontos de vista, principalmente quando se trata de um debate tão enrolado como esse.
Começo minha resposta lembrando a pergunta do caro Atila: “O ser humano é monogâmico por natureza?”.
Mas, pensando em todo o carnaval que advém dessa e de outras perguntas, coloco outra questão: “Será mesmo necessário procurar esta resposta?”.
Minha ideia é tentar mostrar como nos ocupamos tanto em tentar definir – nos encaixar em um padrão moral ou biológico dos relacionamentos amorosos – e esquecemos que ser honesto consigo mesmo é muito mais importante do que atender a uma expectativa externa.
Monogamia automática
Observem as seguintes historinhas:
1. Era uma vez um menino que conheceu uma menina. Eles se apaixonaram e resolveram namorar. O amor deles cresceu e resolveram casar. E assim foram felizes para sempre.
Alguma coisa estranha nessa história? Claro que não! Afinal quando as pessoas se amam elas se casam e são monogâmicas para o resto de suas vidas, certo? Bem, pelo menos foi assim que minha mãe, minha professora, a novela das oito e o filme de Hollywood me ensinaram. Se duas pessoas se amam, são independentes e não seguem este roteiro, alguma coisa errada tem. Essa é a visão da massa esmagadora das pessoas. Quer ver?
2. Era uma vez uma menina que conheceu um menino, eles se gostaram e se viam periodicamente. Daí a menina conheceu outro menino e também gostou dele, e avisou aos dois da situação. Eles aceitaram e a menina continuou tendo um relacionamento com cada um dos meninos. O amor deles foi crescendo e, depois de algum tempo, os três conversaram e resolveram morar juntos e foram felizes para sempre.
Bem, eu aposto que a maioria das pessoas acha que não existe amor nenhum na segunda historinha e que esse relacionamento nunca “daria certo” (seja lá o que isso signifique), que na verdade a menina é uma bitch indecisa e manipuladora e os meninos são dois bananas com pouca auto-estima.
Sabe por quê? Porque as pessoas acreditam que o amor é um sentimento que só se tem por uma única pessoa num recorte temporal. Mas quem foi o grande cientista que descobriu os padrões do que chamamos de amor? As pessoas esquecem que “amor” é só um conceito (extremamente abstrato) e acabam naturalizando o valor que a nossa sociedade lhe atribui (não pretendo mencionar valores religiosos porque são verdades dogmáticas, logo não se dispõem a debate).
Além disso, mesmo que as pessoas não se declarassem apaixonadas numa relação, o que as impede de terem uma felicidade duradoura, exercerem o respeito mútuo e fazerem o relacionamento “dar certo”?
Fidelidade monogâmica: a árdua tarefa
Como outras formas de relacionamento diferentes do amor monogâmico não são socialmente aceitas, a maioria das pessoas passa a vida inteira acreditando que uma relação é aquela coisa pré-definida, e entendem que é obrigação natural delas tentar encaixar-se neste padrão. E aí o que acontece? A infidelidade torna-se um ato extremamente banal e a monogamia torna-se apenas uma brincadeira de faz de conta, quando na verdade o ato de casar não corresponde sempre ao que as pessoas querem de verdade naquele momento de suas vidas (ou talvez nunca).
Não é à toa que o casamento virou piada. Toma-se a decisão sem considerar questões mais profundas, dá no que dá.
O casamento é o símbolo máximo no imaginário do amor monogâmico. Como qualquer decisão que envolva comprometimento, deve ser uma consequência de nossa necessidade e estilo de vida; exige uma análise psicológica de si mesmo sobre seu presente e seu futuro. É um erro encarar um casamento, ou qualquer relacionamento, esperando que ele dê “um jeito” na sua vida, como se fosse uma entidade milagrosa, como Jesus Cristo ou Iemanjá. Se alguém se casa e trai constantemente seu parceiro, inclusive desde antes do matrimônio, é impossível que esta pessoa tenha escolhido o casamento como uma resposta às suas necessidades.
Quando um modelo de relacionamento é a única opção aceita como normal, perde-se a noção de responsabilidade sobre as próprias escolhas (afinal não haveria outra escolha normal), sobre si mesmo e sobre seu parceiro. A traição é encarada, então, como parte do processo ou visto como ato de uma pessoa canalha, não por mentir, mas por querer outros relacionamentos.
Tiro estas conclusões porque passei por experiências que me fizeram pensar sobre isso e conversei com pessoas sobre esse assunto, obtendo sempre a mesma resposta (consciente ou inconsciente, verbalmente ou através de seus atos): o único caminho é o amor monogâmico, então a traição é uma forma de aliviar a pressão. Lembro-me de uma conversa mais ou menos assim:
– Porque você trai sua namorada se você a ama tanto?
– Eu amo minha namorada, quero viver ao lado dela, mas não consigo controlar a vontade de sair com outras mulheres. Eu preciso disso.
– Ué, tudo bem, você não é uma aberração por sentir isso. Mas então escolha uma namorada que aceite isso.
– Ah, não é fácil assim…
É claro que não é fácil assim! Passamos a vida toda aprendendo os costumes e valores de uma cultura e engessamos nosso cérebro para aquela realidade, sem perceber que ela é apenas um molde. Não preparamos nossa cabecinha e nosso coração para outras perspectivas e modos de ser. Assim os critérios que definem quem é ou não interessante para nos relacionarmos são definidos por estereótipos estéticos e aspectos superficiais, não pela postura que se tem frente a um relacionamento, afinal só existe uma postura possível, né?!
A supervalorização do amor
As pessoas alegam que não se pode controlar o amor. Ok, admito que não é fácil escolher quem iremos amar, mas é possível. Você amaria um(a) neonazista? Ou um pedófilo? Acho que não. Afinal, que filosofia de vida você segue? Quais são seus princípios?
Estas questões nos levam a outro problema de naturalizar o amor monogâmico clássico: deixar um sentimento nebuloso controlar escolhas importantes.
O amor é entendido por muitos como algo sem explicação (quem nunca ouviu falar do amor à primeira vista?), no qual a princesa não precisa conhecer o príncipe, suas ideias e crenças; basta sentir as borboletas na barriga ao olhar para ele e pronto, ela saberá que está amando.
Eu digo “Bullshit!”. Se o amor é considerado um sentimento tão importante para a humanidade, ele não pode ser construído sobre nada. E essa construção precisa de um tempo, de avaliação, de compatibilidade de valores e necessidades. Quando priorizamos nossos princípios ao invés dos estereótipos sobre sentimentos, aprendemos a ter responsabilidade sobre nossos atos e dar a eles um sentido. Escolhemos pessoas que se encaixam melhor com aquilo que queremos naquele momento. O resultado certamente será mais construtivo.
Não estou falando de perder o romantismo, pelo contrário. Estou falando de cultivar o romantismo e os sentimentos de uma forma muito mais real. É tão gostoso quando percebemos que construímos, aos poucos, uma relação profunda, compartilhada de verdade, que nos dá muito mais felicidade do que qualquer outra paixonite que já vivemos, porque dessa vez faz sentido para nós e se encaixa na nossa vida, independente se é um relacionamento a três, uma relação homossexual ou a monogamia tradicional.
Não existe a necessidade de distribuir as mulheres entre os homens como se elas fossem bens a serem distribuídos numa sociedade comunista (e machista), assim como a sociedade também não precisa das nossas escolhas amorosas e sexuais para seguir em frente de forma “civilizada”, como dá a entender a argumentação final do Atila.
Temos que apagar esse ranço da história que diz que uma suposta moralidade do sexo e do amor tem algo a ver com o caráter ou a competência de alguém. O que existe é a necessidade de sermos honestos conosco e com as pessoas que cativamos (pergunte ao Pequeno Príncipe), de nos educarmos para a diversidade de formas que os relacionamentos podem tomar, com ou sem amor, mas que seja sempre consciente, construído e que nos faça donos das nossas decisões, dos nossos erros e acertos.
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