Nunca comprei a ideia convencional de “rede”. Interligação, entrelaçamento, crowd-tudo, seis graus de separação, teia da vida, escambo, networking, rizoma… OK, isso existe, mas não é apenas isso que acontece quando realmente operamos além do umbigo.
Aqui não vou focar nos processos mais complexos de rede (como na metáfora da rede de Indra ou nas pirações de Douglas Hofstader em Gödel, Escher, Bach), não vou falar de física ou biologia, mas da experiência de primeira e segunda pessoa ao sairmos para uma caminhada fora da cabeça.
Dessa perspectiva, mais do que apenas se conectar com pessoas, como se fôssemos uma rede de computadores, gradativamente substituímos uma mente pessoal por uma mente coletiva, pronta para usufruir de qualidades, saberes e experiências disponíveis no espaço social — cuja imagem está menos para nuvem do que para céu. Como dizia Ken Wilber, a intersubjetividade vista por fora se parece com uma rede, mas como ela é por dentro?
Por “mente coletiva” não me refiro a uma substância mística nem a algo parecido com o inconsciente coletivo de Jung, pois boa parte desse processo é consciente, tangível e não necessariamente arquetípico. Acionar a mente coletiva é simples, descomplicado, acontecendo já agora. Evidenciar essa dinâmica pode nos ajudar a expandi-la. Descrevo abaixo oito processos que podemos detectar e às vezes intencionalmente ativar.
1. Emprestar olhos
Duas amigas compraram uma bike e estão começando a andar bastante pela cidade. Encontrei uma edição especial da Vida Simples focada na cultura dos bikers e mandei um email rápido para elas. Ao ouvir “Estou andando de bike”, comecei a andar por aí com esse olho delas (ou, se quiser, elas pegaram os meus emprestados).
Fazemos isso também quando procuramos um apartamento para alugar ou um novo trabalho, mas geralmente não usufruímos desse processo com nossas relações, habilidades, aspirações, obstáculos, aflições. Temos várias áreas que mantemos trancadas. Não colocamos nossa vida inteira na rede. Não deixamos que os outros pensem a nossa vida como se fosse a deles. E por consequência não pensamos tanto na vida dos outros como se fosse a nossa.
2. Criar relação com inteligências coletivas
Pirei no jeito de trabalhar da empresa LiveAd, depois paguei um pau pra Box 1824 e pouco tempo passei a invejar também a Perestroika. Então comecei a perceber que as mesmas pessoas rodam entre essas três empresas e que elas vieram da mesma fonte.
Estou aprendendo que o melhor jeito de se relacionar com essas empresas (seja para fazer parcerias com o PdH ou até para alguém que deseja ser contratado), mais do que se relacionar com pessoas, é se perguntar “Em qual software elas estão operando?” ou “O que está por trás dos olhos dessas pessoas?”, entender essa atitude invisível, ampliar esse sistema operacional, usar essa mente coletiva que move tais projetos. Isso naturalmente vai fazer com que as empresas vejam riqueza e queiram fazer algo junto com você ou com sua organização.
Se uma pessoa incorporar os princípios ativos pelos quais eu opero, mesmo que eu ainda não a conheça, ela já é uma grande parceira.
3. Abrir nossa vida
Para saber como está um amigo distante, antes eu escrevia apenas um “E aí, como tá a vida?” e recebia respostas igualmente curtas. Aprendi rápido que eu mesmo precisava contar tudo antes de perguntar. Abrir-se é o melhor modo de abrir os outros.
Quantas pessoas ao seu redor sabem os pontos profundos em que você está na vida? Eles sabem quais são seus sonhos ou quais são suas aflições, manias, vícios, dificuldades em crescer? À medida que falamos de coração, um a um, sobre o que realmente importa, vamos nos colocando em uma rede. Quanto mais olhos e percursos disponíveis, mais facilmente conseguimos superar obstáculos e realizar projetos.
Link YouTube | A água que você esconde é a mesma água que eu escondo. A água que você quer é a mesma água que eu quero.
4. Cultivar espaços de esbarrões autênticos
Por que as pessoas adoram participar de um TED, de um encontro da Cabana PdH, de uma meditação silenciosa do CEBB, de um curso da Perestroika ou de uma roda de TaKeTiNa?
O conteúdo das palestras e dos cursos são excelentes, por exemplo, mas eles ficam disponíveis online. Conheço americanos que pagam caro para ir a todos os eventos oficiais do TED apenas para se encontrar com as mesmas pessoas que pela primeira vez ouviram suas ideias com interesse e confiança, querendo botar a mão na massa, pra valer.
Não queremos mais conteúdo. Queremos esbarrões, empurrões, toques reais, ouvidos atentos, olhos brilhando, histórias de transformação. Em vez de depender apenas de grandes eventos como os do TED, podemos começar a cultivar esses espaços nós mesmos. O espaço físico é o de menos; o desafio é criar um espaço sutil que ofereça tais possibilidades. Para isso não precisamos sequer organizar um sarau ou uma TAZ, mas alterar o próprio modo como nos apresentamos uns aos outros.
5. Acompanhar e se alegrar com a vida de mais e mais pessoas
“O outro é você mesmo em um mundo diferente.”
–Lama Padma Samten
Eis outra face da pergunta que fiz no item 3: quantas pessoas você está acompanhando de perto (mesmo que à distância ou com encontros espaçados)? Aquele cara conseguiu terminar a pós? Qual era o tema? O filho daquela sua amiga já nasceu? Eles estão bem, vivendo com propósito? Quem ao seu redor está meio confuso e perdido? Nunca listei todos, mas acho que dá para fazer isso com 100, 200 pessoas, 300 pessoas… Nosso coração é bem grande.
Em alguns papos com pessoas que chegaram pedindo tipos variados de ajuda, percebi dois problemas de base: a situação sempre era encarada como algo pessoal e havia uma ausência de rede colaborativa. Portanto, em paralelo aos problemas, comecei a me observar oferecendo os mesmos conselhos, sobre como que é essencial construir essa rede e começar a viver com uma inteligência mais coletiva.
Ao se propor a ajudar os outros, você termina por inclui-los em sua rede e também despessoaliza os obstáculos (mostrando que você e todo mundo ao redor está passando por problemas parecidos), o que inevitavelmente ajuda você mesmo, o inclui em outras redes.
Se nos alegramos apenas com nossas vitórias, vamos nos alegrar de vez em quando. Se nos alegramos com as vitórias dos outros, vamos nos alegrar todos os dias. Porque acaba com o autocentramento na marra, operar em rede nos protege de uma eventual depressão.
6. Reconhecer o tamanho da exclusão
Assim que começamos a contemplar todos esses processos de abertura aos outros, pode brotar uma tristeza junto ao reconhecimento de nossos pontos cegos, áreas de indiferença que sem querer cultivamos por anos, todo santo dia, ao andar pelas ruas ou mesmo em relação a pessoas bem próximas do trabalho e da família. Às vezes tal constatação é ainda mais cruel: percebemos que estamos ignorando nossa esposa, nosso melhor amigo, nosso sócio…
Para ajudar nesse difícil reconhecimento, criamos uma lista dos sintomas da exclusão (já publicada aqui no PdH):
7. Tornar-se um veículo de algo maior
”Como eu não tenho nenhuma ideia realmente original, a partir de hoje vou escrever sempre entre aspas.” –Gustavo Montanari Gitti
Vejo dois caminhos de crescimento: 1) incrementar nossa mente pessoal ao máximo para conseguir sucesso em todos os jogos nos quais estamos envolvidos; 2) desistir do sucesso pessoal, abrir espaço e se envolver em processos que elevem os outros (e nós mesmos) por meio de qualidades impessoais disponíveis a todos.
O primeiro caminho é mais ou menos como tentar colocar toda a água do mar na piscina da sua mansão em vez de sair pra nadar no oceano. No segundo caminho, quanto maior nossa rede, quanto mais operarmos com inteligências coletivas, maior nosso alcance, potência, felicidade. Subir nos ombros e dar seguimento a uma linhagem é o caminho do menor esforço para ser mais inteligente.
No meu caso, por exemplo, as ideias do Gustavo Gitti sempre foram pequenas e não renderam grandes coisas. As melhores coisas que já fiz foram frutos de mentes coletivas. E a maior riqueza da minha vida, a fonte dos maiores benefícios, qualidades e alegrias (que eu usufruo e algumas ofereço), veio de correntes milenares.
Percebi isso recentemente ao construir meu site pessoal. Está lá, escancarado: o melhor de mim é exatamente o que não vem de mim.
Quando penso nisso, vejo que eu não tenho chance alguma sozinho. É como se as inteligências mais restritas perdessem o encanto, virassem joguinhos previsíveis. Podemos mais, podemos expressar inteligências mais amplas. E então surge uma tremenda admiração e vontade de aprender com os grandes professores.
Não é que os grandes professores sejam seres especiais. A diferença é que eles reduziram ao mínimo suas mentezinhas pessoais e aprenderam a operar mais e mais com uma mente coletiva, mas não qualquer mente coletiva (a cultura do tráfico é uma mente coletiva!). Eles operam com qualidades e softwares que são muito amplos, como generosidade, paciência, sabedoria cortante, compaixão, ludicidade…
Quando viajei pela primeira vez para aprender com Reinhard Flatischler, criador da TaKeTiNa, queria ganhar habilidades e conhecimentos específicos sobre a relação entre ritmo e vida, música e consciência, vindos de cara que aprendeu com grandes mestres do ritmo ao redor do mundo. Queria voltar um Gustavo Gitti fodão, mas não consegui. O que eu estou aprendendo até hoje não cabe em mim. É impossível. A cada vez que tento dar uma de espertinho, sou obrigado a desistir de usar tal sabedoria pra incrementar minha bagagem, sou obrigado a me entregar e ser usado por algo que não sou eu.
O que me inspira é ver que mesmo meu professor até hoje não acha que ele é algo. Reinhard sempre diz que ele é 5% do que via surgir em seus professores, como o xamã coreano Kim Seok-Chul.
Pra mim está cada vez mais evidente: minhas ideias não vão levar a lugar algum. É só quando começo a operar com uma mente que não é minha que consigo criar algo decente. Subindo nos ombros, operando em rede e manifestando inteligências impessoais, sem tanta interferência do Gustavo Gitti, muitas coisas boas surgem, como se fosse a própria inteligência operando, criando novas coisas, olhando para isso, olhando para aquilo…
Ultimamente está bem mais contrastado isso: quando opero com Gustavo Gitti, adiciono mil camadas, tenho dúvidas, medos, falo demais, tenho preguiça, confusão, a vida vira uma zona; quando opero com algo maior (mesmo que com obstruções minhas), a coisa toda flui melhor, sem tantas camadas desnecessárias.
Espero que esse contraste aumente. Espero operar menos e menos no modo “Gustavo Gitti” e mais no modo impessoal.
8. Introduzir elementos de caos
Por ordem e controle, a tendência é que alguns indivíduos imponham seus hábitos e certezas sobre outros, diminuindo o poder do coletivo. Um dos modos mais eficazes de reveter esse processo é introduzir caos — ou ser cúmplice quando a vida já estiver tocando o terror — até o ponto de ninguém sozinho conseguir sair da situação.
Quando há caos e boas conexões de rede, surge o milagre da auto-organização. Um exemplo simples pode ser visto no fim de um espetáculo: sem nenhum regente, as centenas de pessoas na plateia em poucos segundos sincronizam as palmas. Logo após o caos as mãos se auto-organizam de modo coerente, por si só.
Quanto mais forte a conexão de rede, mais caos podemos aguentar e mais improváveis serão as soluções criativas e novos direcionamentos surgidos por auto-organização. Em uma rede assim, é quase impossível existir alguma forma de ditadura, já que todos os processos que não surgem de modo coletivo não se sustentam. O caos constante protege a rede.
O bom líder, nesse caso, é aquele que mais ouve, reflete, serve, adivinha, antecipa, protege, amplifica, ajuda, se move a favor dos outros. Quem não faz isso naturalmente perde poder.
* Mais sobre esse processo você encontra na prática “Operar com uma mente coletiva” (no lugar) e também na edição de agosto da revista Vida Simples.
Outros processos?
Quando você age em rede, o que mais observa?
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