Eu sou um cara cético e ateu. Nunca me conectei com qualquer tipo de crença. Não engulo aquele discurso new age que sempre inventa “novos paradigmas” misturando física quântica com tudo, xamanismo com reiki, Platão com Osho…
E acredite: esses exemplos são reais. Já me deparei com cada uma dessas visões.
O fato é que as pessoas mais flexíveis, sábias e bem-humoradas que conheci, todas faziam alguma prática de meditação. É muito difícil ignorar isso.
Nesse mundo de personalidades públicas envolvidas em escandâlos, encontramos uma reputação praticamente inatacável justamente em um dos maiores praticantes vivos de meditação: S.S. o XIV Dalai Lama. Quem consegue duvidar daquela gargalhada?
Dele surgem as seguintes afirmações:
“Os cientistas não são céticos o suficiente” (se referindo à crença em uma realidade exterior pré-definida anterior à percepção),
“Se a ciência provar que reencarnação não existe, imediatamente retiraremos esse ensinamento de nossa tradição”,
“Não se converta ao Budismo. Procure efetivamente praticar sua religião ou apenas tenha um bom coração”.
Eu o admiro pois sua grandiosidade não vem de nenhum aspecto divino ou sagrado: é sua humanidade que comove ao nos apontar o que podemos ser.
A mente de quem medita, ao contrário do que pode parecer, não é preenchida com opiniões e crenças, mas com dúvidas, incertezas, aberturas, espaços. A meta é menos aprender do que desaprender; é desconstruir, descondicionar. Isso é expressão de uma mente científica por excelência.
Tanto que, ao lado do biólogo Francisco Varela, o Dalai Lama fundou o Instituto Mind & Life, hoje a principal organização que está pesquisando de modo coerente e contínuo os efeitos da meditação, sem cair em conclusões precipitadas em favor de alguma crença religiosa (como ocorre na maioria das pseudociência que se faz na busca por comprovação científica do nonsense nova era).
Definição
Se quiser relaxar, peça uma massagem. Se deseja treinar concentração, jogue xadrez. Se busca por estados alterados, talvez um alucinógeno seja a melhor opção. Ainda que algumas técnicas foquem a concentração ou resultem em algum estado alterado, a meditação pode ser definida como um repouso na condição natural de liberdade da mente.
Há três palavras-chave nessa afirmação: repouso, condição natural e liberdade. O repouso não é passivo ou totalmente relaxado; é atento, alerta. Usa-se esse termo para especificar o estado sem esforço encontrado na base anterior à nossa confusão. Essa base é inata, natural, sempre presente – não é algo que precisamos atingir.
O terceiro ponto é o principal. Se tivéssemos de relacionar uma só idéia ao significado de meditação, “liberdade” seria a palavra. Não confunda com livre-arbítrio: fazer o que desejamos é repetir um padrão impulsivo, o exato oposto da liberdade. Passamos grande parte de nossa vida agindo sob a ilusão do livre-arbítrio, sendo controlado pelas coisas às quais respondemos passivamente.
Liberdade aqui guarda o sentido de estar liberado das fixações e poder se movimentar em todas as direções, além de qualquer confinamento. Meditar é treinar a liberdade frente aos condicionamentos. Entender isso ajuda a dissipar a idéia da meditação como uma repressão de desejos ou como uma fuga do envolvimento com os prazeres mundanos.
Objetivo
O objetivo da meditação muitas vezes é confundido com seu efeito. É como se explicássemos que fazemos sexo para suar, bagunçar os cabelos e dormir! O sexo causa isso, mas não o fazemos com isso em mente.
Claro que há efeitos positivos em vários níveis (biológicos, psicológicos, sociais), mas esse não é o foco. Aliás, para desespero de alguns, quando meditamos com alguma noção de ganho em mente, reduzimos os benefícios reais que surgiriam naturalmente da prática.
Não meditamos para nos sentir bem, alcançar o sucesso pessoal e profissional, nos livrar do cigarro, da dor de cabeça, fugir do estresse, dar um tempo longe nossos problemas. Pelo contrário, na meditação é que vamos finalmente olhar para os problemas de frente, chamar nossos medos, abandonar certezas, invocar a confusão.
O objetivo da prática é bem mais simples do que ganhar dinheiro ou conquistar mulheres, porém imensamente mais ousado. Explico. A psiquiatria e a psicologia ocidental lidam basicamente com os desvios e as doenças da mente, sem muito a oferecer para uma pessoa considerada normal – aquela com um nível aceitável de neurose, sem o qual não conseguiríamos viver.
No entanto, pessoas normais como eu e você continuamos com inúmeros problemas e sofrimentos. Ficamos com uma pessoa pensando em outra, trabalhamos em um emprego sonhando com outro, não lembramos da nossa própria morte, somos orgulhosos, invejosos, experts em auto-engano, vomitamos justificativas em vez de admitir nossos erros, não sabemos nos relacionar com os outros sem causar sofrimento…
A lista é praticamente infinita, pois temos impulsos e condicionamentos variados que se combinam com situações e seres a todo momento. Por mais que nossa intenção seja boa, não conseguimos agir bem. Sabemos que beber e dirigir pode matar nossos amigos, mas esquecemos disso no meio da noite.
Planejamos acordar cedo e comer bem, mas aquele preguiçoso que desliga o despertador é mais forte do que o empolgado que o configurou.
Além dos impulsos, temos visões estreitas. Nosso autocentramento nos cega e nos aprisiona, sendo que se apenas olhássemos em volta encontraríamos saídas e soluções insuspeitas. Esse olhar obstruído também nos impede de ver potenciais e qualidades nas pessoas. Você já listou a quantidade de opiniões, achismos, filosofias, esperanças e crenças que você sustenta diariamente?
Enquanto muitas abordagens visam uma reprogramação desses modelos mentais (PNL é um bom exemplo), a meditação vai dinamitar nosso chão sem colocar nada no lugar.
Um caminho além dos extremos de envolvimento impulsivo com as situações, por um lado, e afastamento ascético da vida, por outro. Um treinamento para não ser refém dos próprios hábitos e para transcender olhares limitados.
Um meio hábil para aplicar na prática, com nosso corpo, tudo o que de mais inteligente já passou por nossa mente teórico-discursiva. Um método para aprender a se desidentificar dos próprios valores e significados para poder adentrar os mundos dos outros, construindo um genuíno diálogo. Eis o sentido de sentar e não fazer nada por horas.
Efeitos
Matérias
sobre meditação na mídia inevitavelmente enfatizam seus efeitos
biológicos: “medite e seja mais saudável”. Isso é verdade: a postura
facilita a circulação do ar, a alimentação muda (comer muito e errado
transforma a meditação em um pesadelo!), a qualidade do sono melhora,
diminuem consideravelmente o estresse e a ansiedade que antes nem
sabíamos que existiam em nós.
Observe-se
agora e sentirá uma leve contração, uma espécie de nó que faz seus
ombros tensionarem. Esse medo não localizável é um processo que nos
impede de respirar com os dois pulmões e pisar com os pés no chão.
Os
efeitos sutis são os melhores. Sutis, mas igualmente mensuráveis no
funcionamento de nosso campo emocional, habilidades cognitivas e
principalmente nas nossas ações e relações cotidianas. Sentimos o
frescor de uma vida autêntica (como queriam os existencialistas), livre
das artificialidades e estratégias que usamos para nos conectar com as
pessoas. Estratégias que enpalidecem nosso mundo.
Com
a prática, as cores voltam a ficar vívidas e sentimos mais prazer com
nossos cinco sentidos. Coisas banais como acordar e escovar os dentes
nos alegram. Apesar de ficarmos mais expostos às dores, os sofrimentos
desvelam uma qualidade onírica e não nos afligem tanto. Pouco tempo de
meditação já nos mostra que não precisamos de quase nada para ser feliz e
inflar a vida de sentido. Basta voltar à nudez crua do simples viver.
Por onde começar?
Para
meditar não é preciso estar ligado a prática religiosa alguma. Hoje há
um movimento para desvincular as técnicas de atenção, contemplação e
meditação das tradições de fé. Ainda assim, os principais professores e
instrutores são mestres de alguma tradição e, por isso, falar em
meditação ainda é de algum modo falar em religião.
O
importante é sempre analisar o grupo de praticantes e o instrutor, além
de testar cada ensinamento na teoria (pensamento, filosofia, lógica) e
na prática (quais os benefícios na sua vida). Uma boa opção é aprender
meditação cristã, budista ou hindu, mas sem se filiar à religião ou
adotar doutrina alguma. Como sou apenas um iniciante, deixo instruções
básicas para começar a praticar.
Os
interessados devem procurar um grupo e um professor qualificado. Antes
de começar, não encare a prática como algo místico ou esotério e não
fique contando a todos que agora você está meditando. No futuro, isso
trará complicações desnecessárias: ou alguém vai cobrar uma postura
lúcida de você e repreendê-lo a cada ação impulsiva, ou você sem querer
acabará contribuindo para a tese de que a meditação não funciona, não
traz benefício algum.
Estabeleça
uma boa motivação também: como você causa mais sofrimentos nos outros
do que em si mesmo, vá meditar focando trazer felicidade a todos os
seres.
Comece
com 5 ou 10 minutos diários. Para muitos, 5 minutos é muito tempo! É
natural que seja assim, portanto respeite sua atual condição. Escolha um
local tranquilo e sente-se em uma almofada. Os dois joelhos devem tocar
o chão, portanto a postura de índio está descartada. As pernas devem se
cruzar paralelamente (postura birmanesa), com um pé em cima da outra
perna (meio lótus) ou com os dois pés em cima das pernas (lótus
completo).
Se
tiver dificuldades em encostar os dois joelhos no chão, use uma
almofada mais alta. Coluna ereta, mãos repousando sobre as coxas, língua
no palato (para reduzir a salivação), olhos abertos ou semicerrados 45º
à frente, respiração natural sem esforço, queixo para dentro. É
importante não fechar os olhos porque o objetivo é manter o contato com
os fenômenos, não se perder em algum estado particular da mente.
Vários
pensamentos e emoções surgirão no espaço da sua mente. Em algum
momento, você será fisgado e entrará em uma cadeia de respostas
condicionadas: “Ontem aquele filme, bem legal, mas eu não curti o final.
Aquele outro é bem melhor, assisti no cinema com aquela garota gostosa.
Que pernas! Será que consigo sair de novo com ela, acho que tenho o
número de telefone…”. Quando você acordar, estará em pé com o celular
na mão, descontrolado pela libido! Mas você está meditando.
Em
algum ponto, lembra-se disso e retorna: “Puxa, estou meditando aqui
sentado”. Você fará esse processo várias e várias vezes. O objetivo não é
reprimir o que surge, mas simplesmente exercitar a opção de não
responder, não reagir. Quando ficar bom nisso, terá liberdade de mover
sua libido, em vez de ser movido por ela. Liberdade de ligar ou não para
a garota. Meu professor conta que liberdade é poder falar “ou não”.
Dizem
que após o início da prática contemplativa nossa vida piora muito antes
de melhorar. Na verdade, essa sensação de piorar surge porque enfim
vemos nossa confusão e paramos de nos enganar. Comigo, ainda não
melhorou. Para ser sincero, não chegou sequer a piorar!
Meu
orgulho e minha preguiça insistem em achar que não preciso meditar e
que tudo está bem como está. Tenham compaixão por mim e meditem muito.
Por favor. Eu escrevi todo esse texto só para isso.
Depois da prática
“As
práticas espirituais só adquirem seu sentido na vida cotidiana. A
relação com nossos pais, esposa, marido, filhos e colegas de trabalho,
isto é o termômetro da prática. Todas as construções espirituais, ainda
que meritórias, são esponja, água e sabão, ou seja, dispensáveis ao
final.” –Lama Padma Samten
No final, o que importa mesmo são as 23h nas quais você não está sentado em meditação.
O método budista, por exemplo, divide o treinamento em três etapas:
visão, meditação e ação. Você pensa, analisa, compreende. Depois senta,
respira, contempla.
Tudo
para poder se levantar e começar a fazer o trabalho sujo mundo afora.
Quando finalmente se livrar do peso que você é (seu autocentramento,
suas justificativas, sua seriedade), aí sim a brincadeira começa!
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.