Nossos vizinhos estão loucos…

…ou mais lúcidos que nós?

O Uruguai tornou-se nesta terça-feira o primeiro país do mundo a legalizar a produção, distribuição e venda de maconha sob controle do Estado. Um amigo que esteve recentemente em Montevidéu me disse que o ambiente lá já estava, na época de sua visita, francamente favorável ao consumo público de maconha. Ele contou ter observado pessoas conversando e fumando na Rambla, avenida que segue ao longo do Rio da Prata, enquanto idosos passeavam tranquilamente, agindo com naturalidade.

Esse relato não me deixou surpreso.

Experimentei maconha no breve período de seis ou sete meses entre os 19 e 20 anos. Jamais comprei, e em geral era em visita a algum amigo que casualmente fumava. Lembro da namorada de um deles tinha seu tradicional “chá das cinco”, consistente em sempre fechar um baseado ao final de toda tarde. Pelo que sei, ela nunca deixou de fumar e hoje é mãe de três filhos, bem criados e saudáveis.

Isso faz duas décadas. Em um punhado de meses larguei o que nem chegou a ser hábito, como quem abandona aulas de violão por não ter vocação para a coisa. Simples assim, rápido assim. Apesar da sensação agradável que a maconha produzia durante o estado alterado de consciência, encontrei uma satisfação muito maior e mais persistente na prática da meditação. Além disso, não estava disposto a me submeter aos efeitos negativos do consumo prolongado de cannabis sativa, principalmente à perda gradual de memória e de capacidade respiratória.

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Mas isso não me impediu de conhecer fumantes habituais de maconha ao longo desses outros vinte anos, gente que aceitava como toleráveis os eventuais efeitos colaterais da droga – afinal, tudo na vida é uma questão de escolhas amadurecidas e concessões ponderadas. Conheci uma personal trainer que fumava todas as noites, e hoje ela é uma feliz mamãe que mantém a boa boa forma com caminhadas diárias.

Conheci também um matemático bem sucedido que, em um acordo com sua esposa, fuma na garagem para os dois filhos não serem influenciados muito cedo por seu hábito – conduta talvez superior a dos pais que bebem cerveja na frente dos filhos menores. Conheci um Promotor de Justiça que, nos fins de semana, ficava em sua casa na praia fumando maconha e praticando surf. Esses e outros tantos, todos profissionais competentes, com famílias estruturadas.

Por isso acho meio engraçado quando fazem alarde sobre a regulamentação do consumo e produção no Uruguai. Mas percebo o campo minado que é o assunto, não sou ingênuo. É um daqueles temas polêmicos que desperta o pior das pessoas. É difícil discutir a questão com maturidade, objetividade e sem o uso de falácias lógicas ou de “lugares comuns”.

Na verdade, assuntos como a legalização da maconha são o terreno perfeito para a proliferação de cretinos fundamentais de ambos os lados. Eles sentem de longe o cheiro da discussão e, independentemente de serem contra ou a favor a decisão histórica do governo uruguaio, apresentam argumentos falaciosos e recorrem a ofensas pessoais para impedir que a civilidade seja o denominador comum entre os debatedores.

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Porém, esse assunto é importante demais para que os cretinos fundamentais impeçam qualquer tentativa de debater o tema. Se fosse algo que só dissesse respeito aos maconheiros (sem preconceito algum no uso dessa expressão), tudo bem, nem valeria a pena se estressar, pois se trataria de uma questão de interesse de um grupo minoritário, e a eles caberia colocar em pauta a discussão.

Porém, o fato de economistas premiados com Nobel, políticos conservadorescriminalista experientes defenderem abertamente a descriminalização do uso da maconha já é o bastante para deixar claro que não se trata de uma questão de interesse individual dos denominados maconheiros, mas de interesse de toda sociedade, inclusive e principalmente de quem não consome a maconha.

E aí entra outro testemunho pessoal. Durante mais de uma década trabalhei em órgãos judiciários especializados em matéria criminal. Foi tempo suficiente para perceber, na prática, que a quantidade de sofrimento produzida pela criminalização da maconha é imensamente superior aos malefícios que sua eventual legalização pode trazer à sociedade. Não é apenas uma questão jurídica e criminológica, é uma questão política e social.

Foi em março/2009, durante uma viagem de férias (por coincidência, para o Uruguai), que outro aspecto da questão começou a se descortinar para mim. Meu voo atrasou, e fui na banca do aeroporto comprar a edição daquele mês da revista britânica The Economist, uma leitura habitual. Tive então uma surpresa ao abrir a revista e testemunhar, em uma série de artigos temáticos, que mesmo os conservadores economistas ingleses haviam concluído que o melhor seria acabar com a proibição da maconha. O editorial era conclusivo e direto, ao dizer:

“A proibição falhou; a legalização é a solução menos pior.”

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Naquele momento, no saguão aeroporto, minha experiência pessoal e profissional convergiram e foram sintetizadas naquela frase, principalmente nas duas últimas palavras: “menos pior”. Então compreendi qual era a questão principal que estava em jogo nessa história toda.

A questão principal não é se maconha faz mal à saúde (ela faz sim, embora em nível bem inferior ao tabaco). Também não é se a maconha vicia (ela vicia sim, embora em nível menor do que o café). E tampouco a questão principal é se a maconha pode produzir desvios de comportamento (pode produzir sim, como qualquer estado alterado de consciência). A questão principal é reconhecer que estamos inafastavelmente diante de dois cenários ruins, e que precisamos escolher qual deles é o menos pior: continuar proibindo ou legalizar?

Por trás dessa questão principal existe a incapacidade das pessoas de reconhecerem que não estamos em um mundo perfeito, e que tentar forçar esse mundo à perfeição nem que seja na porrada produz mais dor do que admitir e tolerar suas eventuais falhas. No fundo, trata-se de assumir uma sabedoria prática, e de ter humildade, enquanto sociedade, diante das imperfeições inevitáveis do mundo real.

É claro que todos desejamos viver em um mundo ideal no qual bastaria uma só lei, curta e direta, dizendo o seguinte: “Está proibido o mal no mundo”. E, nessa sociedade perfeita, todos seríamos cidadãos fieis cumpridores dessa lei, e ninguém beberia, fumaria tabaco ou usaria maconha (provavelmente também os adolescentes não se masturbariam em excesso e nos cinemas só haveria filmes água-com-açúcar, tudo sem violência alguma). Porém, acreditar que é possível resolver os problemas do mundo dessa forma é cegar-se para a verdade de que há vícios e maus costumes que não podem ser eliminados sem que, para tanto, causemos muito mais prejuízo e dor.

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O absoluto fiasco que foi a lendária Lei Seca americana já deveria ter nos ensinado o seguinte: criminalizar o consumo de drogas leves como álcool, tabaco e maconha é como tentar curar uma gripe inoculando no organismo um câncer. E esse câncer, no caso, é o fortalecimento do crime organizado.

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Claro, não é que o crime organizado vai deixar de existir com a descriminalização das drogas leves, mas a cada nova proibição damos uma nova fonte de renda para essa forma de criminalidade, que se desenvolve até ameaçar o organismo social com uma metástase. Como disse o político e médico texano Ron Paul, do Partido Republicano, em artigo publicado pela CNBC, a ilegalidade das drogas é, na verdade, o principal fator que ajuda a manter os altos lucros dos traficantes e dos carteis, e que garante que o crime organizado domine o mercado.

A verdade é que a maconha, com ou sem proibição, produzirá sempre lucro, e inclusive para empresas legitimamente constituídas, como demonstrou, em artigo de 2004, Walter Maierovitch, jurista e ex-Secretário Nacional Antidrogas da Presidência da República. A pergunta a fazer é se queremos bilhões de dólares nas mãos de grupos organizados que sequer tributos pagam. Ainda que muitos não gostem da ideia de grandes multinacionais angariando lucros com uma nova política criminal sobre o assunto, é importante lembrar que a atual política proibicionista impede até mesmo a plantação caseira que não seja para estrito consumo pessoal.

E outro aspecto desse câncer, com o qual se tenta curar uma gripe, consiste no malefício social resultante de etiquetar como criminosos aqueles que apenas consomem álcool, maconha e tabaco e que, do dia para a noite, deixam de ser adultos irresponsáveis e dissolutos para se tornar, sob o ponto de vista legal, marginais. E a criminologia já demonstrou à saciedade os efeitos danosos desse tipo de etiquetamento social.

É bom lembrar que, na iminência de ser derrubada a Lei Seca americana, que criminalizava o comércio de álcool, não faltaram aqueles que previam a desagregação da sociedade, o aumento do consumo de outras drogas pela porta que era a bebida e outras tantas consequências apocalípticas em tudo semelhantes às atuais objeções feitas à descriminalização da maconha.

Porém, a verdade é que, durante a proibição da Lei Seca, quem queria beber ainda conseguia tomar seu uísque, só que a um preço bem mais caro e pagando ao crime organizado, que lidava com a repressão praticando crimes bárbaros. Desse modo, com o fim da Lei Seca, o quadro que se descortinou foi totalmente outro: não houve nenhum relevante aumento do consumo de álcool, não se instaurou o caos na sociedade, e o único fato relevante foi que os gângsters perderam grande parte de seu poder e fonte de financiamento.

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Algo semelhante foi constatado na Holanda, em relação à maconha. Em 2011, um extenso e detalhado estudo do professor Robert J. MacCoun, da Berkley University, demonstrou que a parcial legalização holandesa não causou qualquer dos efeitos apocalípticos profetizados. Concluiu, ao contrário, o seguinte:

1. O consumo de maconha dos holandeses foi menor do que o consumo nos países vizinhos;

2. O consumo de maconha pelos adolescentes holandeses não é tão elevado quanto o consumo em países nos quais ela é proibida, tais como nos Estados Unidos;

3. Após a parcial legalização, o consumo de maconha por jovens na faixa de 15 a 24 anos caiu de 14,3% para 11,4% entre 1997 e 2005.

Claro, muitos gostam de lembrar das recentes restrições do governo holandês às coffee shops, mas se esquecem de mencionar que essas restrições são destinadas apenas aos estrangeiros, e que seu verdadeiro motivo não é nenhum quadro dantesco de viciados caindo dopados pelas calçadas. O verdadeiro e singelo motivo é que os milhões de alemães e belgas que chegavam de carro dos países vizinhos para fumar maconha estavam provocando engarrafamentos e barulho em cidades pacatas do sul da Holanda, como Maastricht.

Esquecem também de mencionar que a cidade Amsterdã, que não recebe tantos turistas de carro e também tem uma estrutura viária maior, pressionou recentemente o governo holandês e conseguiu a suavização dessas novas restrições ao consumo de maconha pelos estrangeiros, pois seus cidadãos não sentem nenhum incômodo no trânsito e, além disso, esses turistas são uma valiosa fonte de renda à cidade – questão de bilhões de dólares anuais.

Do outro lado da questão, em relação à proibição, recentemente especialistas da Oxford University Press publicaram um estudo intitulado Política da Cannabis – Movendo-se para Além do Impasse (Cannabis Policy – Moving Beyond Stalemate). As pesquisas desenvolvidas nesse estudo demonstram que as prisões de usuários de maconha não diminuem seu consumo – ao contrário, a demanda só tende a aumentar. Concluíram que a guerra contra a maconha é, além de absolutamente inútil, “social e economicamente devastante”.

Considerações como essa justificaram a existência de projetos como o Count the Costs, destinado a apurar e documentar os impactos negativos da política de proibição do consumo de drogas nas áreas de segurança, desenvolvimento, saúde pública, direitos humanos, descriminação, criminologia, meio ambiente e economia. E também inspiraram a elaboração de documentários como o premiado The Union: The Business Behind Getting High, de Brett Harvey, e o brasileiro Cortina de Fumaça, de Rodrigo Mac Niven.

E a falência da proibição legal é devida à absoluta impossibilidade de qualquer sistema policial e judiciário conseguir se infiltrar em todos os minuciosos meandros do convívio social, para verificar se está sendo praticado, na vida privada de pessoas totalmente corretas em todos os outros aspectos de suas vidas, um hábito que dá razoável prazer e cujos prejuízos não são insuportáveis, imediatos e claramente perceptíveis – ao menos na grande maioria dos casos.

Tentar criar um sistema de proibição que tenha os mecanismos necessários para tal infiltração social é gastar rios de dinheiro para enxugar gelo.

A única razão para insistir em tal situação é a necessidade eleitoreira de satisfazer o cidadão que confunde questões objetivas e práticas com aspirações morais irrealistas – o tipo de pessoa incapaz de perceber que o mundo real, em toda a sua extrema complexidade, nos impõe muitas vezes apenas duas alternativas indesejáveis, cabendo a nós escolher aquela que produz o menor sofrimento possível.

Para quem quer saber mais dados

Esse infográfico vem do site Drug Law Reform e tem dados sobre o pioneirismo uruguaio.

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Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."