Quase todo homem brasileiro já teve em algum instante o sonho de ser jogador de futebol.
Seja naquela mais tenra infância, quando cada um escolhe um jogador preferido e finge que é ele quando chuta uma bola de plástico na rua; seja na adolescência, quando aquele gol na final do campeonato estudantil faz surgir no fundo da sua cabeça um “Barcelona, por que não?”; ou mesmo depois de adulto, quando a jogada mais bonita na pelada te faz pensar que, ok, ao menos uma vaga na defesa do Remo você conseguiria se tivesse se dedicado mais ao futebol e menos ao cardápio do KFC.
Conforme o tempo passa nós entendemos que aquele destino épico como artilheiro dos milhões não vai rolar. Seja porque o joelho não aguentou, porque a vocação é outra ou até mesmo porque mal conseguimos cobrar um lateral sem enrolar os braços e precisar de atendimento médico.
Ao mesmo tempo em que somos obrigados a seguir a vida em empregos menos glamourosos ou respeitados – eu nunca pude fazer um release e dedicar pra todas as crianças carentes do Brasil, por exemplo – vai se formando pra cada um de nós a ideia de que o emprego de jogador de futebol é meio que o melhor trabalho do mundo, a bocada máxima, o Santo Graal das fontes de renda.
Afinal, é um emprego que não precisa de diploma, paga bem, exige poucas horas diárias de dedicação, tem reconhecimento no mundo todo e pode garantir uma aposentadoria bem precoce se o cara souber se organizar. Ou seja: você nunca vai achar nada parecido nem nos classificados e nem no jornal dos concursos.
Não que isso seja totalmente verdade. Os salários milionários são privilégio de uma parcela mínima dos jogadores, existem os períodos de concentração em que eles se afastam da família, a pressão da torcida e dos dirigentes pelos resultados, as viagens, entre todos os outros elementos que fazem com que a carreira de atleta profissional no futebol, como todas as outras carreiras, tenha suas vantagens e desvantagens, seus prós e contras.
O problema é que, mesmo assim, entendendo bem as pressões do esporte competitivo, compreendendo os pesados graus de lesão e esforço físico, levando em consideração que alguns jogadores abandonam família e amigos em busca de um sonho, a maioria de nós ainda trocaria seus empregos pelos deles. Quer dizer, eu mesmo penso, no mínimo três vezes por semana, que largaria esse escritório pra ser lateral direito reserva na série b do Campeonato Norueguês, sem hesitar e treinando em período integral, pra vocês terem uma idéia.
E isso, claro, sempre vem à nossa mente quando vemos um jogador aprontando alguma dentro ou fora de campo. Furada dentro da pequena área em clássico? Insinuações de linchamento. Atraso a treino? Irresponsabilidade imperdoável. Gol perdido debaixo da trave? Galera faz um boneco dele e bota fogo dentro do estádio. Bebida na véspera do jogo? Vamos perseguir esse cara com um carro dentro de um túnel pra que ele morra como se fosse a princesa Diana.
Ou seja, apenas não conseguimos ter com o jogador de futebol o tipo de complacência que temos com diversos outros profissionais da área do entretenimento ou mesmo do esporte – nunca vi ninguém xingando a mãe de um ator quando ele erra uma fala durante uma peça ou gritando: “hey, Maureen Maggi, vai tomar no c*” durante os Jogos Panamericanos.
Essa “intolerância” nasce dos dois fatores que eu já mencionei antes: a sensação de que “a gente poderia estar fazendo isso” e a visão de que “jogar futebol não é trabalho”. Da sensação de que seríamos capazes de fazer o que boa parte deles está fazendo – e não nego que diante dos últimos jogos do Avaí, por exemplo, ela é bem forte – vem a nossa base moral pra criticar os erros com uma severidade que não reservamos pra outras áreas de atuação. Não criticamos com essa veemência economistas, biólogos e lançadores de dardo porque simplesmente não nos sentimos tão capazes de estar no lugar deles, já que paramos de estudar na parte de “oferta e demanda”, não lembramos o que é uma monocotiledônea e pra falar a verdade estamos até um pouco surpresos que dê pra ganhar a vida lançando coisas pontudas em alvos.
Mas no caso do futebol, todo mundo se acha capaz de cortar aquele cruzamento, passar aquela bola, deslocar aquele goleiro e mandar a bola suavemente pro fundo das redes pra logo depois correr em direção a câmera da Globo e fazer uma dança esquizofrênica em troca de um joão-bobo, daí nossa facilidade pra gritar que o Deivid “é um animal”, que o Richarlysson “precisa apanhar pra aprender” e que o Andrezinho “deveria morrer queimado”.
Quando você complementa isso com a visão de que futebol não é trabalho, que permite pensar que qualquer jogador, por mais bem sucedido e talentoso que seja, chegou onde está por uma combinação de fatores que envolve muito mais sorte do que competência e está sempre recebendo bem mais do que deveria — note como todos estão sempre dispostos a criticar os salários astronômicos de um jogador de futebol mas nunca questionam os rendimentos e dividendos de nenhum executivo ou especulador financeiro — você tem tudo que precisa pra que esse tipo de atleta profissional seja ao mesmo o grupo mais invejado e o mais criticado.
Aquele cujo lugar mais gostaríamos de roubar e também (provavelmente pelas mesmas razões) o que mais tem chance de ser algum dia imprensado dentro de um banheiro por “clientes” que querem tirar satisfações.
E fica cada vez mais fácil notar no futebol brasileiro os traços disso, dessa visão menos de idolatria e mais de ressentimento dos torcedores com os atletas. Seja com jogadores sendo praticamente “convidados” pela torcida a trocar de clube, como já aconteceu no Corinthians, até casos mais graves como o Fred, em dia de folga, sendo perseguido de carro por tricolores no Rio e o do jogador João Vitor, hospitalizado após ser agredido por diversos torcedores do Palmeiras. E quando você soma um esporte que gera paixões exacerbadas e uma visão do jogador de futebol como “não-merecedor” das regalias que tem, é muito complicado que isso seja diferente.
Por isso, num contexto em que provavelmente não vai ser fácil reduzir a paixão pelo esporte e muitas pessoas apenas não estão dispostas a aceitar que o futebol é apenas um jogo e bater num atacante porque ele perdeu pênalti segue basicamente a mesma lógica que bater num cozinheiro porque ele errou num molho, a melhor solução possivelmente é a mais simples: se colocar no lugar do outro. Sim, eu sei, é quase bíblico, nem vou negar.
Afinal, tente imaginar que você amanhã tem uma reunião tensa, daquelas decisivas, pra fechar negócio e decidiu sair à noite com seus amigos pra conversar, relaxar e beber um caipisaquê, de boa. Você gostaria que o pessoal da contabilidade, que depende da sua reunião pra projetar o orçamento do próximo ano, te perseguisse de carro, te prensasse na porta e falasse que não era hora de estar bebendo, você devia é estar em casa revendo o projeto?
Se você se machucasse no trabalho e pegasse atestado, você iria achar bacana se algum colega fosse te cobrar em casa, dizendo que você está fingindo lesão e na verdade poderia estar trabalhando? E claro, se você fizesse aquela cagada no projeto e a empresa perdesse um cliente, você gostaria que todo mundo na Copa te cercasse no corredor e te batesse?
Sei que são comparações extremas e meio grosseiras — afinal, quando você fecha um bom negócio ou se sai bem num projeto raramente fazem faixas e bandeiras ou cantam “uh, terror, o Rodolfo é matador” — mas elas servem pra fazer a gente lembrar que um jogador, ainda que ganhe bem, ainda que só jogue duas vezes por semana, ainda que tenha luxos e vantagens que nós várias vezes mal podemos imaginar, ainda é um cara de carne e osso que, assim como a gente, está tentando fazer o trabalho dele.
Seja qual for o seu grau de sucesso ou de dedicação nesse trabalho, não deveria sofrer por isso conseqüências piores do que as de qualquer outro profissional. Não importa se podíamos estar no lugar dele ou se a única explicação pra que ele esteja onde está hoje é uma combinação abusiva de sorte, sorte e possivelmente um pouco mais de sorte. E não, em nenhum instante mencionei o nome do Doni. Vocês concluíram isso sozinhos.
A verdade, ainda que venha sob a forma de um imenso clichê, é que no final das contas, por mais emocionante, apaixonante e especial que seja pra todos nós, o futebol é apenas um jogo. E se um jogo, seja ele qual for, está fazendo com que deixemos de lado a diversão, percamos o foco do entretenimento saudável e cheguemos a, na prática ou até mesmo na teoria, a querer ameaçar, agredir ou apenas ferir severamente outras pessoas, é porque não estamos conseguindo processar ele direito.
Ou ao menos é nisso que devemos tentar pensar quando perdermos um título, ficarmos fora da libertadores ou formos rebaixados porque algum zagueiro lerdo fez um pênalti, algum meia limitado errou um passe ou algum atacante perdeu um gol debaixo da trave num lance que até mesmo nossas avós conseguiriam concluir.
E não, eu não estou falando do Deivid.
De novo vocês concluíram isso sozinhos.
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