Devido à tempestade em Porto Alegre, fiquei 48h sem luz em casa durante o fim de semana passado. O máximo de tempo que passei sem eletricidade foi numa tempestade similar que ocorreu quando eu morava em área rural. Porém, naquela época o trabalho era tão intenso que, quando faltava luz, eu simplesmente aproveitava para dormir.
Eu não estava nem um pouco preparado para essa tempestade. Como meu modelo de celular tem uma bateria particularmente boa, perdi o hábito de mantê-lo sempre no carregador, e restava mais ou menos metade da carga quando faltou luz. A única lanterna da casa eu havia recarregado sabe-se lá quando. O leitor de e-books estava com 3% da carga.
A tempestade parecia normal até saírmos de casa pela manhã. Em frente ao posto da Polícia Municipal do lado da minha casa, dois guardinhas nos explicaram que as ruas estavam cheias de árvores caídas, e que um barco de passeio havia virado. Seguindo ao Parque Marinha do Brasil, que fica bem próximo de onde moro, percebemos a cena desoladora de dezenas de árvores e galhos espalhados por todo lado. Não havia passagem para o centro da cidade, nem mesmo a pé. De um lado, tudo alagado; do outro, troncos enormes sobre a via, um em seguida do outro, com o chão denso de galhos.
Então acessamos as notícias, e tivemos uma noção da tempestade. Ela não chegou a durar 30 minutos. Mas ninguém havia morrido, só vários feridos.
Quando a normalidade retornaria? Esse era o questionamento torturante de todos os moradores afetados com a falta de luz. Um senhor na rua me disse que as coisas estariam normais ao meio-dia e vinte de domingo. Alguém na família trabalhava no maior jornal da cidade, algo assim. Mas como, mesmo quem estaria trabalhando diretamente na remoção de tantas árvores, poderia ter uma ideia de tempo? Ainda mais uma tão preciosista ao ponto de marcar 1/3 de hora?
Voltei para casa e vivenciei o dia silencioso, aproveitando a luminosidade natural. Por algum motivo, o celular não pegava no interior da residência – torres repetidoras sem luz, provavelmente. Então o mantinha desligado, e a cada par de horas saía para a rua para verificar e-mail, Facebook, o que fosse – bem rapidinho para já desligar o aparelho. Mais para o fim da tarde, resolvi ir ao bairro Cidade Baixa encontrar um restaurante ou estabelecimento que me permitisse acesso a uma tomada para carregá-lo. Foi um grande erro, o bairro era um dos mais afetados pela falta de luz.
Ao chegar lá, durante o crepúsculo, o visual era semelhante ao do filme Fuga de Nova Iorque. Um carnaval de rua supostamente estava acontecendo, e, portanto, havia, além das árvores caídas, e alguns churrascos de rua, um bom porcentual de gente bêbada e drogada perambulando sem rumo. Não havia, no entanto, clima de festa. Era só uma situação de nervoso coletivo. Presenciei a polícia encamburando um sujeito com grandes sacolas pretas. Um gerador hospitalar enorme chegando para proteger os bens frios de algum supermercado. Tudo isso com a noite em encalço, aproximando-se rapidamente, antes da chegada do ônibus que permitiria que eu saísse daquela festa estranha com gente esquisita.
Chegando em casa, sem lanterna e sem celular, me deparei com os corredores completamente escuros do prédio. Precisei tatear minha porta, e quando consegui entrar, passei um tempo me debatendo contra os móveis até agrupar uma vela e fósforos para localizar a lanterna, que havia deixado displicentemente sabe-se lá onde.
Então os 3% de e-book – e minha própria imaginação – eram o que restava. Eu, claro, havia cometido o erro de dormir na tarde pachorrenta e silenciosa, sem luz. Só para ficar íntimo com os fantasmas do breu profundo na noite infinda…
Mas 3% no leitor de e-books foram longe. Li dois livros inteiros, o que me faz considerar se o medidor de bateria não estaria um tanto mal calibrado.
Num determinado momento fiz janta – nem tenho ideia de que horas eram. Fervi a água, piquei alho, fiz macarrão ao sugo. A geladeira, mantida fechada até esse momento, 24h depois do começo da falta de luz, ainda tinha refrigerante relativamente frio. Mas inventariei que talvez perdesse sete pacotes de pão de queijo congelado. O chão da cozinha, que já não estava muito limpo para começo de conversa, agora totalmente molhado.
Não sei o que minha gata achava disso tudo, e ela também não soube me explicar. Ela costuma miar muito, mas agora nessa escuridão, pelo jeito era cada um por si. Num determinado ponto da noite a ouvi caçar um inseto – eu, budista, normalmente a impeço de matar. Saí com a lanterna e ambos conseguimos encurralar a barata, que eu aprisionei e devolvi para o mato, na calada da noite cheia de sons de grilos que eu jamais havia ouvido.
Na manhã de domingo, conversei novamente com pessoas na rua. Algumas vezes até acontece de as pessoas falarem comigo na rua, mas nunca próximo de onde moro. No máximo um “oi”, se é alguém com que você já cruzou olhares uma penca de vezes. Porém, nessa situação, todas as barreiras sociais estavam frouxas. Disseram-me que um shopping center mais ao sul estava permitindo que pessoas carregassem seus celulares, e que a internet estava, excepcionalmente, aberta.
Eu abomino shopping centers, mas este em particular. É o cúmulo do white trash do mau gosto da mosca do cocô do cavalo do bandido. Em duas ocasiões em que fui com alguém que teve que usar o estacionamento, a experiência foi ainda pior. Mas, era para lá mesmo que eu iria, bem feliz, de ônibus, hoje.
Pedi informações e me direcionaram para uma sala em que havia seis tomadas, com miraculosas apenas cinco ocupadas – e um sofá livre. Pluguei meu “cebola”, e logo aquelas pessoas aleatórias começaram a conversar entre si e comigo. Essa sala era do lado do atendimento ao consumidor, e uma senhorinha veio fazer uma reclamação. Ela hesitou na porta, achando que todos ali estávamos esperando para fazer o mesmo.
Quando expliquei que não estávamos esperando atendimento, e que estávamos carregando o celular, ela disse “até para isso tem fila hoje em dia?”. Ela nem sabia que boa parte de Porto Alegre estava sem luz. Em alguns lugares já começava a faltar água, porque as bombas estavam igualmente privadas de força elétrica.
Angariei popularidade da sala ao ser cortês, mas cortantemente espirituoso, com a tal senhora. “Ah, a senhora tem luz em casa! As coisas estão um pouco diferentes para a maioria de nós sem eletricidade há mais de 30 horas. A situação está um pouco fora do comum para boa parte da população.”
Em seguida apareceu a moça do iPhone. A moça do iPhone estava muito estressada porque teve que tomar cerveja com gelo no botequim, e não tinha ar-condicionado. Ela teve até que pisar num supermercado, coisa que ela odeia, para carregar o celular! Opa. Ela já havia carregado o celular, no mesmo dia, num supermercado? Sim, sentada no chão, com várias outras pessoas espetando benjamins e réguas de tomadas e fazendo o mesmo. Mas para que carregar tanto o celular? Ah, é porque ela tem o tal de modelo popular de iPhone, tá na hora de comprar um de verdade etc. Bateria não dura nada. Mas agora só falta 10%, ela nem vai ficar muito tempo.
Todo mundo carregando o celular com ele ligado, mesmo quem nem olhava para ele. Pessoal não sabe que demora mais, nem eu disse nada.
A moça estava muito chateada com dormir sem ar, nem mesmo um ventilador. Comentei que as noites estavam relativamente agradáveis para o verão, as coisas não estavam tão ruins. Certamente não senti falta de ventilador ou ar – a pessoa em questão é que meio que se “condicionou” a condicionar a temperatura de seu ambiente. Ela foi ao super, de fato, comprar repelente para poder abrir a janela.
Outra senhora contou que estava num hotel, porque ela não era daqui, e que no hotel também não tinha luz. Quando o marido e o filho apareceram, intuí que era para o tratamento de saúde do filho, um menino completamente careca, de boné. Uma pessoa nessa situação já carregou estoicismo suficiente para aguentar várias indignidades, mas ela proveu um bom contraste com a moça cheia de repelente, insatisfeita com seu iPhone popular, e com ter que pisar num supermercado, e certamente depois numa “sala de carregar celular” no shopping.
Um senhor relaxado tinha o melhor lugar: sentado ao lado da tomada ele conseguia usar o celular enquanto o carregava. Passei duas horas ali conversando, carregando o computador e o celular (esqueci o e-book reader!). Quando cheguei, ele já era figura tarimbada na sala. No fim saiu 10 minutos antes de mim, fazendo alguns comentários sobre a luz voltar à meia-noite de domingo, confirmado.
Saindo do shopping, onde não consumi nada, fui ao supermercado que a moça falou – que tinha luz. Comprei gelo e peguei um ônibus de volta para casa. O ônibus, no entanto, não entrou para o lado onde eu desceria, embora eu já tivesse visto que retiraram as árvores da pista.
Peguei um táxi e o taxista comentou que no morro para onde aquele ônibus vai havia acontecido tiroteio. Os traficantes aparentemente estavam bem chateados por não ter água, e fizeram a população de refém para pressionar as “otoridades”. Sei lá se isso aconteceu mesmo, ou se funcionou, mas não demorou muito para a luz voltar no meu bairro, que é onde estão as bombas.
Com minha energia garantida nas baterias de lítio, passei o que tinha no laptop para o leitor de e-book, e provavelmente iria ler um terceiro e quem sabe quarto livro, não tivesse a luz voltado lá pelas 22h. Agora só faltava a internet retornar.
Poucos minutos depois de tudo “normalizar”, já é como se nada tivesse ocorrido. É claro que podemos refletir sobre o quanto nos tornamos dependentes da eletricidade, ou da comunicação por internet e celular. Um comentário que ouvi mais de uma vez foi, “como as pessoas faziam 200 anos atrás?”. Mas essa percepção considero um tanto superficial, ou no mínimo clichê. É óbvio que nossa mente está acostumada e ocupada com a situação em que ela se encontra. Sempre foi assim. Na década de 90 eu estava alinhando o drive de disquete de meu Amiga 500, e fui descuidado com alguma ferramenta, produzindo algum curto. De um momento para o outro eu não tinha mais meu computador pessoal – que não tinha modem, e não se comunicava com ninguém. Eu sofri alguns dias, daí passou. Eu não tinha dinheiro para consertar ou comprar outro. Depois de uns meses, comprei um bem pior, um ZX Spectrum, com processador z-80 de 8 bits – ele era um pouco melhor do que meu primeiro computador, de 5 ou 6 anos atrás, e muito pior que o Amiga, que tinha um processador de 32 bits e já tinha uma interface gráfica. Mas eu me acostumei a carregar programas com fita cassete de novo. Deve ser mais ou menos assim quando alguém que é rico perde o dinheiro e tem que viver como classe média. É desagradável, mas a pessoa se adapta, não é o fim do mundo.
Pessoalmente a questão da comunicação e da socialização mais intensas foram mais interessantes. Porém, não acho que fossem “falta do que fazer”, falta de luz ou internet, apenas – mas também o sentimento comunal de passar por uma mesma dificuldade. Alguém apareceu no Facebook dizendo que foi a “tempestade mais democrática de Porto Alegre”. E, de fato, lemos o tempo todo sobre destelhamentos terríveis – e tempestades e enchentes com mortes no sul. Porém, agora alguns bairros de classe média também foram afetados.
Quando você tem um exemplo pessoal do sofrimento dos outros, mesmo como um breve incômodo, isso transforma o seu incômodo e dá um valor inusitado a ele. O seu incômodo o ajuda a se aproximar do outro. E então quando algo vai errado, você já pode ficar cheio de expectativa interessada perante o que essa intempérie vai revelar. Nós ficamos felizes ao abrir um presente, e chateados ao receber más notícias – mas, no fundo, a riqueza é sempre a mesma. Em certo sentido, a riqueza é a própria maleabilidade perante o que quer que surja.
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