O que quer dizer que somos iguais, homem e mulher, árabe e polonês? O que nos faz diferentes e o que essa diferença significa?
A diferença não é só um problema difícil no seu sentido básico, metafísico, mas também no seu sentido direto, cotidiano, ela está presente de forma cortante. A diferença é o que tememos e o que ansiamos. Usualmente, como valor ou pela força de expressão mais comum, a igualdade é prezada, e a diferença nem tanto. A palavra “diversidade”, por outro lado, parece possuir hoje uma conotação de riqueza e harmonia implícita.
É possível distinguir a metafísica da diferença e da igualdade em duas correntes: a essencialista e a nominalista.
Na corrente essencialista, há elementos próprios dos entes, que não são características, mas exatamente o que faz com que eles sejam o que são — são esses elementos básicos ou fundamentais que distinguem uma coisa das outras e que, quando partilhadas por uma coisa distinta (e aí jaz o problema) produzem esse efeito de identidade ou igualdade entre duas coisas. Isto é, duas coisas partilham uma mesma essência e, portanto, em certo sentido, essas duas coisas são a mesma coisa, ou instâncias de uma mesma coisa.
Todo o problema surge em capturar o que seria essa essência. Entre eu e um gato há várias coisas que eu diria essenciais que partilhamos como mamíferos. Respiramos, vamos ao banheiro, comemos, dormimos, se tudo correu bem e continua correndo por um tempo, fomos cuidados por nossas mães e cuidaremos de nossas proles. Algumas partes de nossas experiências são distintas, digamos, o uso sofisticado da linguagem, um calendário, contar histórias, produção textual e musical não são coisas comuns em gatos (que não estejam sendo usados como marionetes, como no caso do meme do gato que toca teclado). E, possivelmente há muitos elementos da vida de um gato que são peculiares a ele, e incomuns num homem, como tomar banho se lambendo ou projetar muscularmente as unhas para atacar ou brincar. E sabe-se lá o que mais.
Com certeza boa parte da experiência de um homem é incomensurável para um gato, e muito provavelmente boa parte da experiência de um gato é incomensurável para nós.
Wittgenstein usou um aforismo enigmático que parece explicar bem essa noção de diferença incomensurável:
“Se um leão pudesse falar, nós não o entenderíamos.”
Isto é, não bastaria um leão desenvolver um aparelho fonético e “aprender” o português: seria um pouco como eu falar sobre esse texto com um matuto. E veja, nossa tendência imediata é qualificar essa incomensurabilidade, porque nós já estamos do lado do texto, e então quem não o “entende” imediatamente, automaticamente passa a ser julgado “inferior”. Mas Wittgenstein não está dizendo que o leão é melhor ou pior do que nós, ele apenas está dizendo que as coisas que um leão teria a dizer, as coisas próprias de um leão, não nos fariam sentido.
As nossas coisas comuns de mamífero seriam, como são para nós, uma parte ínfima e quase desprezível do que ele teria a dizer. E de fato, podemos inferir que há poucas coisas que ele poderia ter a nos dizer.
Isso não quer dizer que algum nível basal de comunicação não tenhamos com gatos ou leões, claro que temos. Essa comunicação existe, e ela parece ser importante e cara a nós exatamente porque existe um vasto oceano de incomensurabilidade em nossa diferença.
A diferença não é só assustadora e desconcertante: ela é fascinante e sedutora.
Num determinado ponto da história da antropologia surgiram várias noções sobre a atemporalidade em que supostamente povos primitivos viveriam, e até mesmo sobre a possível determinação linguística da percepção da realidade (do tempo, por exemplo, ou da história) por alguns desses povos.
Assim, uma pessoa que aprendia como língua nativa uma língua sem algumas de nossas (indo-europeias) indicações de tempo, viveria num presente eterno, ou algo assim. Embora, a princípio, essa perspectiva sempre tenha sido bem-intencionada, essa própria boa-intenção acabou criando certos problemas. No seguinte sentido: se tentava valorizar a sabedoria específica e incomensurável de determinado povo, e havia uma espécie de admiração (talvez não muito distante do sentimento de culpa) por uma por uma diferença percebida como riqueza, por outro lado, isso naturalmente reificava algumas interpretações e estereótipos, e algumas vezes reduzia a incomensurabilidade do outro a uma condescendência.
Isso, é claro, foi antes da antropologia começar a estudar etnograficamente a própria antropologia, ganhando uma atitude reflexiva sobre seus próprios métodos. Ela logo percebeu que o que havia sido um grande avanço sobre as perspectivas positivistas e evolucionistas que graduavam “raças” e “culturas” como melhores e piores, mais e menos avançadas, acabou também objeto de escrutínio, pois revelava uma ação afirmativa ideológica, alguns dos erros crassos de Sapir-Whorf, por exemplo, ao estudarem a língua Hopi, acabaram se tornando vergonha para a imagem da teoria de que a língua molda em algum sentido nossa percepção.
Essa teoria levou quase 100 anos para recuperar algum grau de credibilidade através de estudos finalmente bem elaborados.
A discussão sobre a diferença e o que se poderia chamar de “relativismo antropológico” está bem viva hoje, com a questão do profiling. Profiling significa usar um perfil étnico ou racial para a investigação de um possível crime. Assim, homens com aparência e nomes árabes com certeza sofrem mais nos aeroportos norte-americanos.
Eu mesmo só fui revistado pela polícia em duas ocasiões, as duas quando eu estava andando com amigos negros. O profiling é uma questão difícil porque ele parece ser uma posição racista tomada pelo estado, ou justificar o racismo de um agente do estado através de uma política — e ele causa inconvenientes verdadeiros para minorias — ao mesmo tempo em que ele parece ser justificado por estatísticas, e, em certa medida, pelo senso comum.
Isto é, todos entendem que a própria opressão das minorias faz com que uma maior porcentagem desses indivíduos se envolvam em atividades criminais, e então como ignorar totalmente as características estereotipadas de muçulmanos ou, digamos, negros tatuados com roupas de rapper? Muitas vezes nossas tentativas de ser imparciais podem se tornar uma desconexão com a realidade. Mas esse é um problema verdadeiro – isto é, tanto o racismo institucional quanto a necessidade de se usar estereótipos para avaliar situações – que não vai ser resolvido tão cedo.
E, se estamos falando de estereótipos, diferença e incomensurabilidade, que dizer então das questões de gênero e sexualidade? Algumas vezes parece como que se a igualdade de direitos justamente exigida por, digamos, as mulheres, pode se tornar uma busca por igualdade que ironicamente acaba se tornando um louvor ao estilo de vida falocêntrico que supostamente se estaria rejeitando. Assim, as mulheres super bem sucedidas nos negócios, buscando um mundo além do gênero, estão obtendo vitórias que, sob certo viés, poderiam ser ditas vitórias masculinas. Alguém uma vez disse que “mulheres que querem igualdade com os homens são pouco ambiciosas”.
Parece que tudo anda concomitantemente e com grande força: o velho machismo e várias formas de feminismo; forças se confrontando no âmbito de diversidade vs. igualdade e incomensurabilidade vs. convivência. Muitas conquistas, alguns retrocessos e várias situações ainda por se ver no que vai dar. Mas o fato é que existe essa confusão entre igualdade e incomensurabilidade nesse e em outros âmbitos. E um bocado de culpa e o que eu chamaria de “síndrome de Viridiana”. A diferença algumas vezes sequer pode ser assumida, porque, em particular na visão masculina (de quem quer que a assuma), ela vem sempre com alguma comparação. E a comparação vira valor.
Tendemos a valorizar o outro enquanto ele não penetra em nossa zona de conforto. A alternativa a uma visão essencialista é o nominalismo. Para o nominalismo, as essências são rótulos que criamos. Podemos encontrar um nível de igualdade, e até mesmidade, inseparatividade, com qualquer coisa. E podemos encontrar diferença também em qualquer instância.
Precisamos da igualdade no que concerne a direitos: por exemplo, todos que sentem dor, devem, na medida do possível e de sua vontade expressa (se existir), ser protegidos da dor. Ainda assim, existem casos limítrofes que nos confundem. Certas práticas tribais de mutilação nos fazem ter que rever o respeito pela diferença. Onde um relativismo cultural muito amplo impediria qualquer interferência na incomensurabilidade e no direito de qualquer grupo viver “como sua tradição dita”, aparentemente há situações em que pessoas capazes de pensar essa situação digam que intervir e impor uma visão humanista, supostamente (e bem supostamente) a-tradicional, secular, isenta é o melhor.
Percebemos que sim, grupos e sociedades também podem ter suas doenças e tradições espúrias, e embora todo o cuidado deva ser tomado com a incomensurabilidade, certas práticas devem ser universalmente banidas. Claro, estou falando do exemplo extremo de livro texto das infibulações feitas em algumas sociedades africanas. Mas esse é um exemplo de que o encontro com a alteridade nunca é verdadeiramente isento. Existe transformação mútua e jogos de poder em todos os contatos, e estes não podem ser simplesmente descartados.
O nominalismo, ao até certo ponto colocar o traçar da divisão entre igualdade e diversidade numa relação entre o objeto e o sujeito, permite um pouco mais de flexibilidade na questão do respeito, porque há o reconhecimento de que nenhuma parte vive, ou existe por si só, isolada. Nós nos redefinimos constantemente em termos dos outros. Dessa forma podemos aceitar que as forças de estabilidade e mudança, de sedução e poder, estejam em tensão e que não surja o totalitarismo do viés, ou a licenciosidade que vem de uma suposta isenção.
Na Alemanha nazista o judeu foi reduzido a um inseto, a uma doença, a uma coisa ou circunstância indesejável – a alteridade não foi ignorada, ela foi levada ao extremo em que nenhuma essência comum podia ser reconhecível.
Todo discurso que separa um grupo, seja qual for o nome ou aspecto de teoria de conjuntos que seja dado a ele, para virar o bode expiatório de uma circunstância, é no mínimo perigoso.
No Brasil hoje temos um uso de linguagem carregada desse tipo com duas categorias, PT e Classe Média. Por PT, não só o Partido dos Trabalhadores, mas seus defensores, ou o socialismo de modo geral, ou qualquer um que não critique certas ações da situação ou não fique suficientemente indignado com os escândalos de corrupção. Por Classe Média, basicamente o crítico do Bolsa Família, o sujeito cujo principal discurso político é a redução de impostos, aquele que supostamente reclama dos avanços sociais e que não quer ver “pobre” frequentando os mesmos espaços que ele.
Esses dois termos, quando não se referem meramente a “membro do partido dos trabalhadores” e “membro de determinada classe econômica com renda x” já não servem ao discurso. São bandeiras ideológicas de pessoas que querem confraternizar ou jogar cocô em você, não conversar verdadeiramente, mas levantar bandeiras e soprar cornetas como em jogos de futebol. A minha ação pessoal e recomendação é não entrar nesse tipo de torcida, onde o viés sobre a alteridade está completamente tomado de emoções contraditórias e rudes.
Se entendemos que não há uma essência, e que estamos deturpando nomes para engajar emoções e basicamente trolar a consciência alheia, nos abstemos disso. No encontrar o outro ou o igual, não existe determinação de qual coisa é vantajosa, não existe valor.
Há algo de errado conosco quando tratamos a política, o gênero, as outras etnias, tradições ou nações em termos de fagocitar ou aniquilar: o que eu entendo, o que é meu, o que vale para mim é o que me interessa, o outro, se não for o mesmo, se for realmente o outro, que se foda. “No fundo o que você está dizendo é o que eu estou dizendo, somos iguais, somos irmãos”: outra forma de opressão. Entender o outro em sua alteridade é fazê-lo interlocutor, não é separar irrevogavelmente, coisificar ou demonizar; e não é deglutir, reduzir ou interpretar.
São apenas nomes temporários dados a incomensurabilidades. Aceitar a diferença não é leniência, é entrar em diálogo. E o diálogo não é tão óbvio, porque o que normalmente fazemos é projetar um espantalho sobre o outro e falar com nós mesmos como se fosse outro. E nos sentirmos culpados ou vitimizados, porque não vemos de fato um outro, apenas projetamos sobre ele nossas expectativas e temores.
Se nos libertamos da noção de essências, e permitimos que os nomes sejam apenas nomes, o outro pode começar a ser simplesmente o outro. E mesmo quando ele for o “culpado” de algumas de nossas infelicidades, e ele esteja errado em alguma coisa como infibulação ou preconceito, ele pode se tornar um espelho de nossos próprios defeitos, e ensinar algo.
E se vamos explorar o outro para alguma coisa, que seja apenas para isso.
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