Quem já tocou algum instrumento musical sabe como é legal a sensação de missão cumprida que surge ao tocar o acorde final de uma música que se gosta muito.

Aquela sensação de domínio sobre as notas, aquelas que, antes, pareciam se rebelar contra os dedos e que saem quase que naturalmente, após muita dedicação e aprendizado. Aos que jamais tiveram essa experiência, sugiro arrumar um violão e começar a praticar um pouco pra sentir o gostinho.

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Quem já toca alguma coisa, pode dar um passo adiante: pegar as notas da própria música e fazer ainda mais música, improvisando novas melodias de forma espontânea e livre.

Na minha humilde opinião, o mais legal de improvisar é testar as possibilidades oferecidas por uma música. Tocar contando uma nova história, por meio de novas frases e melodias. Tocar a sua versão da história, com todos os deslizes, percalços, erros e acertos que fazem parte de uma boa conversa.

É possível que você tenha algo muito importante a dizer e que simplesmente não ocorreu ao autor ou ao interprete da música. Pode ser que você ache que a música é uma merda e mereça uma boa duma zoada. Talvez ela esteja redondamente errada e precise ser refutada ou, quem sabe, fazer variações em cima do mesmo tema, audaciosamente indo onde o criador da obra jamais imaginou. Improviso é tudo isso e mais um pouco.

Apesar da liberdade e da espontaneidade essenciais ao improviso, não significa que improvisar é tocar notas a esmo. Como todo jogo, existem regras, que somente os improvisadores mais experientes terão a manha de quebrar de forma produtiva.

Para começar a improvisar, você vai precisar de:

1.Tesoura e cola (mentira);

2.Colhões;

3.Instrumento musical, lembrando sempre que a voz humana conta como um instrumento. Se você é cantor e tem um domínio confortável da técnica vocal, nada te impede de fazer improvisos cantados. Senão, a dica é começar com outro instrumento, para poupar a voz de possíveis lesões decorrentes do uso incorreto;

4.Uma ou mais pessoas que toquem junto com você. Um grupo de amigos é o ideal. Se isso não for possível, um computador ou aparelho qualquer que toque música já quebra um galho;

5.Um mínimo de conhecimento para começar a praticar.

Trataremos aqui do item 5. O resto é por conta do leitor.

Tem que saber tocar música?

Sim e não.

Link YouTube | Será que esses caras sabem tocar? Claro que sim. Mas além disso, os caras têm muito feeling

Conhecimento é poder. Quanto mais se domina as regras do jogo, maiores serão as possibilidades de criação e direcionamento da coisa toda. Saber teoria e escalas de acordes faz muita diferença. Já ter tocado alguma coisa antes na vida vai ajudar bastante.

Por outro lado, se a gente fosse esperar ficar pronto para começar a fazer algo, nós nem começaríamos. Aliás, não aprenderíamos nada, pois não começaríamos nada que nos motivasse e desse sentido ao nosso aprendizado.

Por último, o objetivo é lúdico. Não necessariamente sério. Se estiver chato, pare.

Aqui vai um passo a passo pra ajudar na porra toda:

1. Seleção de repertório: comece escolhendo poucas músicas para brincar. Umas três, no máximo, com um andamento lento e que você já tenha ouvido bastante. É bom que ela tenha pelo menos um solo, ou vários espaços onde seja possível solar. O ideal é substituir o solos e improvisos das músicas pelos seus, sem interferir em partes da música que tenham temas, refrães ou estrofes candadas. Standards de jazz são ótimos para isso.

2.Ouça com calma a música, sem se empolgar, mantendo certo distanciamento, tentando sacar as nuances de cada som: em que momento começam as frases, onde elas terminam, de que jeito que os instrumentos entram e saem, etc.

3. Se você tiver um grupo, toque com eles e combine a hora em que cada um vai improvisar. Se for na base do aparelho de som, vá tocando junto com o player.

4. Comece com pouco. Toque uma nota e veja se ela fica bem no contexto da harmonia. Fique nela. Se errar, toque outra, e vá até achar uma que fique legal.

5. Brinque com o ritmo. Veja de quantas formas possíveis dá pra atacar a nota e de quantas formas é possível soltá-la. Experimente inflexões, vibratos, aumentar a intensidade da nota, diminuí-la, abafar as cordas (se o seu instrumento for de cordas), etc. Mas não toque outra nota ainda.

6. Acrescente outra nota. Brinque com ela da mesma forma, e teste todas as possibilidades que a nota tiver dentro da música.

7. Você vai errar. Quando isso acontecer, a regra de ouro é tocar outra nota meio tom acima ou abaixo. Existe uma explicação para essa receita funcionar e que não cabe tratar neste momento. Mas o fato é que existem 99% de chances de voce “corrigir” uma nota errada dessa maneira.

De novo: você vai errar. Errar é humano. Desencane e vá adiante.

8.Repita os passos 3, 4, 5 e 6, sempre inserindo notas diferentes. Aos poucos, a sua melodia está sendo construída.

Link YouTube | Pausa no meio das dicas. Se você quer improvisar, em qualquer âmbito, com qualquer instrumento, você tem que beber dessa água. Miles Davis e John Coltrane tocando “So What”

9. Não toque notas a esmo. Escute o que você está fazendo e escute o que os outros estão tocando. Veja as duas coisas interagindo, escutando com muita calma, sempre.

10 – Faça o possível e o impossível pra memorizar a musica e os caminhos da harmonia. Isso é importante para saber quais notas servem e quais não servem, e o timing de quando os instrumentos entram e saem. Isso te dará mais controle sobre o improviso, e voce terá uma noção melhor de quais notas você podera usar e quais você evitará.

11. Vá construindo, aos poucos, melodias que façam sentido musicalmente, sem pressa ou ansiedade.

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12. Música é feita de momentos de tensão e relaxamento. O ideal é alternar contrastes para conseguir um efeito expressivo. Insistir demais numa única idéia (tensão ad eternum ou relaxamento o tempo todo, tanto faz) só cansa.

Monotonia só serve para minar a energia da música e matá-la aos poucos. Nesse jogo de tensão e relaxamanto, a ideia é jogar com a criação de expectativas enquanto se alterna o clima da música, mandando uma frase leve quando todos esperavam uma frase pesada, e vice-versa.

Tensione e relaxe. Inspire e expire. Varie, para criar interesse.

13. Use pausas. Improvisos precisam de respiração. Você é tão responsável pelas notas que você toca quando pelos silêncios entre uma e outra.

14. Se você sentir que o improviso foi ruim, desencane. Ninguém acerta no gol em todos os chutes.

15. Se não souber o que tocar, apenas ouça. Escute com calma os outros e só depois responda, de preferência a algo que tenha alguma relação com o que foi tocado. “Pergunta e resposta”, saca?

16. Revisite o passo 1. Dessa vez, ao invés de procurar repertório para tocar, procure por referências que possam contribuir com o improviso. Ouvir várias versões de uma mesma música tentando entender como cada versão foi construída é um caminho. Existem outros.

Improvisar também é subir nos ombros de gigantes..

Como lidar com os erros?

Se você for, como eu imagino, um marinheiro de primeira viagem nas águas do improviso, é natural que você cometa muitos erros. Por erros, entenda-se todas as notas fora do tom que não soaram bem, dedos travados, arpejos que não saíram como o desejado, sujeira no som e virtualmente tudo que não agradou ao ouvidos.

Link YouTube | Coisas erradas acontecem e isso não quer dizer que tudo vai sair errado

Tudo bem. Faz parte. Significa que você está no caminho, dando a cara a tapa para aprender. Isso nao diminui ninguém. Errar é o estado natural das coisas. Todo mundo erra. É a ferramenta mais comumente utilizada para se aprender algo.

Não há motivo para se sentir mal e nem ficar ansioso. Se errar, relaxe e respire fundo. Relaxe com o corpo todo, principalmente com as partes do corpo que são usadas para tocar os instrumentos. Isso ajuda a prevenir vícios de técnica e lesões.

Se permita errar numa boa. Se for preciso, pare um pouco e volte depois.

Agora, algumas dicas para depois do improviso:

1. Dá pra baixar playbacks para improvisar em cima. Em geral, sites de cifras costumam apontar para sites de download de playbacks. Sites de torrent também costumam ter compilações deste tipo de arquivo.

2. Aprenda teoria aos poucos. Aprenda o quanto antes sobre escalas de acordes.

3. Ao improvisar, tocar notas da harmonia funciona 100% das vezes. Use isto a seu favor

4. Escute músicas diferentes dos estilos que você está acostumado a ouvir, nem que seja por pura curiosidade ou obrigação antropológica. Se você gosta de rock, vá ouvir os rappers que improvisam versos. Se você gosta de samba, vá ouvir os riffs pesados e

rápidos de metal. Sempre dá pra tirar pelo menos uma ou duas lições importantes e valiosas que os outros estilos podem ensinar.

5. Tirar harmonias e melodias vai melhorar a capacidade de improvisação a longo prazo. É uma prática de paciência, pois requer algum trabalho no começo e demora até os solos ganharem polimento, mas o benefício é garantido e compensa. O ideal é intercalar momentos de prática de improviso livre com outros momentos focados para tirar solos com cuidado.

Esse tipo de prática tem duas grandes vantagens: treinar a percepção de musical de linhas melódicas e aprender a sintaxe musical de verdade, empregadas na construção de músicas tocadas por aí. É rigorosamente o mesmo processo de aprender a escrever bons textos lendo textos bons. O repertório de frases, arpejos e licks (uma espécie de micro-frase) aumenta junto com o repertório de solos memorizados.

6. Se você não tem a manha de tirar solos, comece com algo simples. Vá na humildade, sem o perigo de se frustrar de cara.

Dê preferencia para solos simples, com um andamento mais lento e sem virtuosismos. Se possível, escolha um músico ou uma banda com algum renome, pois ficará mais fácil conseguir material para estudar em cima e corrigir as falhas da própria prática.

Beatles, por exemplo, é uma escolha excelente para este exercício: tem um repertório imenso, que vai das músicas de três acordes até as harmonizações mais estranhas. Há uma abundância de material online e offline para estudo, caso haja necessidade de pegar mais pesado. Te garanto que não faltará público para uma performance eventual.

Link YouTube | Escolha a sua música, o seu instrumento, a sua voz e divirta-se! Perceba também como o John Lennon erra pra cacete e isso não muda em nada a diversão dos quatro tocando juntos

7. Considere a ideia de procurar um bom professor que seja capaz de corrigir eventuais vícios e erros de técnica e fazer acréscimos ao repertório. Bons professores fazem a gente avançar mais rapidamente, pois nos ajudam a direcionar o estudo num determinado sentido, poupando tempo e energia gastos em murros na ponta da faca.

Procure um professor com quem seja possível ter uma boa relação, para não tornar o aprendizado um inferno. Não é qualquer professor que serve para qualquer aluno. Por mais competente que um profissional seja, é possível que os métodos de ensino não funcionem com um determinado perfil de aluno. Nesse caso, o jeito é continuar procurando.

O resto é meter a mão na massa e praticar. Bom improviso!

Rafael Monteiro

Nascido em 82, Rafael é carioca, músico, professor, gamer e chef wannabe, não necessariamente nessa ordem. Tem um interesse particular em estudar linguagens e como fazemos para desenvolver e aprimorar habilidades. Escreve sobre música no blog <a>Guitarrismos</a> e sobre qualquer outra coisa no Facebook. No twitter é o <a href="http://twitter.com/_rafa_monteiro_">@_rafa_monteiro_</a>"