Ontem, uma moça matou o marido a facadas. Foi acusada de homicídio qualificado por motivo fútil: o marido não queria deixá-la sair para um pagode. Depois do crime, ela mesma ligou para a polícia. Na foto da prisão, a moça (aliás, linda) aparece toda arrumada: será que o crime aconteceu quando ela já estava saindo de casa?
Curioso o conceito de futilidade da nossa justiça. Terá sido essa a única vez que essa moça teve seu direito de ir e vir restringido? Será que, ao cometer o crime, estava defendendo não apenas essa ida específica ao pagode mas todas as futuras atividades de sua vida que o marido lhe vetaria? Será fútil matar pra defender a liberdade essencial de ir e vir?
Naturalmente, não sei nada sobre o caso. Vai ver ela é uma louca e o marido, o homem mais tolerante do mundo. Ela matou, precisa ser punida etc. O que importa não são os detalhes desse caso específico. A crônica sempre expande um mote do noticiário para abordar uma questão maior:
Dado que o direito de ir e vir é um dos nossos direitos mais fundamentais, matar alguém para ir a algum lugar, qualquer lugar, ou seja, matar alguém que estava restringindo o seu direito de ir e vir, não pode ser considerado um motivo fútil. Ainda mais num país onde muitas mulheres são rotineiramente impedidas de ir e vir por seus maridos, configurando um quase cárcere privado. Não é justificativa, nem perdoa o crime, mas chamar de futilidade é sacanagem.
Faria até bem para a nossa sociedade se algumas abnegadas dessem o exemplo e esfaqueassem os homens que querem lhes proibir de ir a festas ou de usar saias curtas.
Nós, homens, precisaremos pensar duas vezes antes de tiranizarmos nossas mulheres: se não por generosidade, que seja por medo de facadas.
Para saber mais
O advogado Pedro H. S. Pereira defende que a qualificadora de “motivo fútil” é inconstitucional, por ser, entre outras coisas, subjetiva, vaga e imprópria para a técnica penal.
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