É sinistro escutar sons. Me agrada a palavra sinistro. Além de trágica, tem um som sibilante, aterrorizante. Palavras têm som, personalidade.
Escutar sons é um pouco assim.
Primeiro um som constante, interminável, que começa de repente e parece não mais querer parar. Um zumbido, como o bater de uma pedra contra a outra debaixo d’água.
Não o bater, mas o zumbido que faz. Ele tem um poder enorme. Assola a mente, deixando espaço para os pensamentos, mas se fazendo presente, sempre dominante.
Pode vir a qualquer hora, durar qualquer tempo. Às vezes, à noite, acordo com este zumbido. Tenho a impressão que me atazanou durante o sono até eu acordar. Já fui a médicos –otorrinolaringologista, com um nome deste esperava que espantasse meu zumbido. Nada.
O zumbido não se apresentou para o doutor. Eu disse que tinha, mas o que? Perguntou-me o médico.
Fiquei danado. Afinal, gastei dinheiro, tempo, cansei de esperar, e o zumbido nem se ligou, (nos dois sentidos). Passei por louco, mas não confirmei a doença. É, porque acredito que escutar sons é doença, das mais graves.
Pois não é só de zumbidos, estes já seriam mais do que suficientes, que um escutador de sons sobrevive. Sobrevive, porque tem que ter mais força que para viver. Há também as palavras, soltas, sem sentido, mal pronunciadas.
Parece alguém falando, ora enrolado, ora fanho, ora não sei como. Um outro ser, louco, desconexo, tentando dizer-me algo que não consigo traduzir.
Se me perguntassem o que escutei, não saberia dizer. Felizmente nunca me perguntaram, pois nunca nada disse a ninguém, assim, firme, n,n,n, nunca, nada, ninguém. Acho que me teriam como louco. Só agora resolvi confessar, por escrito. Explicar o outro lado dos sons.
É, porque acham que sons são barulhos, ou música. São também pessoais, inexplicavelmente alarmantes, dominadores. Têm personalidade, por assim dizer. E, repito, são poderosos.
E os sons da noite, quando os barulhos reais se misturam, adquirem forma até, através de sombras e movimentos!? Não, não são apenas os barulhos misturados. É mais do que isso. É uma quantidade de impressões auditivas que se transformam.
Assim como dizem que o branco é o conjunto de todas as cores, ou o preto é a ausência delas, estes barulhos noturnos tomam a forma de um não barulho. E o sinistro é que o não barulho tem som, mais forte ou mais baixo, mas um som que chega até o coração.
Pode ser até comovente, ou entristecedor. Só não os escutei ainda felizes. Também, tão dominado por sons, seria pedir demais escutá-los felizes.
Ah! Uma vez sim. Escutei sons felizes, envolventes. Nunca me esqueço destes. Foram se aproximando, baixinhos, invadindo a sala, aumentando o volume, como sempre dominando o ambiente. Mas desta vez eram amigos, agradáveis. Como um quarteto de cordas onde sobressai o violino. E eram lindos.
Pareciam, para mim, música, o que nunca acontece. Faziam sentido, entranharam alma a dentro. Senti-me nas nuvens, flutuando, a deriva de meus sentimentos. Isto foi só uma, uma única vez. Sonho em acontecer de novo, e meus sonho é impedido pelos zumbidos, não barulhos, silêncios.
Taí, o tal do som do silêncio. Esse é de destruir mentes mais fracas, não habituadas ao outro lado dos sons.
Uma vez os zumbidos me acordaram. Estava lá, chateado por não conseguir mais dormir, tentando me entreter para esquecer o sofrimento de ter um zumbido bem no centro do cérebro, quando de repente, assim, sem mais nem menos, o zumbido sumiu. Tomou doril.
E aí, acordado, sem sono, é que senti o silêncio. Nada, nem um barulhinho, ou música, ou a natureza se expressando. Nada, nadinha mesmo. Lá estava eu, sem som, acreditando ter melhorado. Quem sabe assim é o céu, ausência total de zumbidos, barulhos, não barulhos e o que mais.
E, enquanto pensava assim, o silêncio foi chegando, devagarinho ou de uma vez, não sei. Sei é que chegou. Forte, assustador. Eu, dominado por sons há tempos, não entendi, não me ajustei àquela ausência. Fui me sentindo menor, desamparado.
Procurei de um lado e de outro, sacudi a cabeça e nem um som se mostrou. Rolei na cama, rolei de novo. Nenhum som. Comecei a ficar desesperado. Estou surdo, pensei. Nem mais o som das palavras em pensamento. Compreendi, não era surdez, o silêncio era total, total mesmo.
Nem o barulho do cobertor ao rolar na cama, a respiração minha ou de minha mulher também eram silenciosas. Não entendia mais. Desta vez me achei realmente louco. Cheguei a me imaginar em um hospício (será que ainda existem?).
Esta pergunta me trouxe de volta, mas a que? Ao silêncio. E pensar que os zens da vida se concentram no nada, no som primordial, sei lá, na ausência de som. E eu ali, dominado, prostrado. Já entregue a fatalidade, quase que conformado. Não, nem cheguei perto de me conformar, pois o silêncio não o permitia.
Então criei forças. Parti para a revolta, pura, irracional. Pulei da cama, corri até a sala,
Liguei o som, volume máximo. Acordei a todos, em casa e no prédio. Quase me mataram, sem falar do que me xingaram. Mas, enfim, ouvi. O silêncio se foi. Derrotado? Não sei.
—
“Mais vale a vida,
ou um copo de bebida,
se te curar a ferida.
Mais vale ser e viver,
do que ter e morrer.
Mais vale o aqui e agora,
do que o ontem ou o amanhã
distantes.
E de tudo isto que mais vale,
só resta um pouco,
este momento louco.”
J. Alcino, o sessentão menino. Rio, 11 fev 08.
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