O “torcedor de Copa do Mundo” é um tipo muito comum e específico de torcedor. É aquele tio que não se interessa mais por futebol de clube mas ainda reclama da seleção, aquela priminha que não tem paciência pra assistir mais de cinco minutos de Flamengo x Corinthians mas pinta o rosto e só sabe o nome do Neymar, aquele avô que ainda grita “vai Romário!” toda vez que um atacante de camisa amarela chuta pro gol.
Eles não são consumidores hardcore de futebol, eles não conhecem a escalação dos times, eles quase sempre apostam resultados totalmente estapafúrdios no bolão da família e vencem com 100 pontos de vantagem pra todo mundo, eles só surgem à cada 4 anos para acompanhar a seleção e depois voltam a seguir suas vidas normalmente como se o esporte bretão nem mesmo existisse.
Algumas pessoas se irritam com isso, claro. Num mundo em que os gostos pessoais e o conhecimento específico sobre esses gostos se tornaram cada vez mais a maneira como as pessoas se definem e se valorizam, a simpatia casual de alguém por algo que pra você é um objeto de paixão e/ou um traço de personalidade, tende a soar menos como uma adesão ao seu grupo do que como uma invasão ou apropriação da sua cultura.
Fãs de super-heróis discriminam pessoas que conhecem os personagens pelos filmes e não pelos gibis, jogadores de videogame hostilizam gamers casuais que jogam no celular e não em consoles e, claro, aficionados por futebol criticam aquelas pessoas que acompanham o esporte apenas durante a Copa do Mundo.
E isso é, claro, bobo pelas mais variadas razões. Primeiro porque não existe “polícia do interesse” e amar algo não nos dá autoridade nenhuma a ponto de avaliar o quanto as pessoas precisam ou não amar essa mesma coisa para poder discutir, demonstrar afeto ou mesmo acompanhar o que acontece nela. Ninguém precisa torcer pra um time pra acompanhar a seleção, ninguém precisa ter visto as eliminatórias pra criticar as tremidinhas de lábio do Thiago Silva, ninguém precisa nem mesmo entender exatamente as regras do futebol ou da competição pra apreciar uma Copa do Mundo.
Depois porque, por mais que algumas pessoas pareçam não perceber, uma das coisas mais bonitas e emocionantes de conceitos como “seleção nacional” e “copa do mundo”, é exatamente isso. Durante um jogo da seleção pessoas que torcem para times diferentes, pessoas que não torcem para time nenhum, pessoas que não costuma torcer, se juntam para gritar pelos mesmos objetivos, comemorar os mesmos triunfos, xingar os mesmos bandeirinhas.
Durante uma Copa do Mundo, pessoas que não entendem as regras xingam o juiz, parentes que acham que todo lateral esquerdo é o Roberto Carlos como se “Roberto Carlos” fosse o nome da posição e não do jogador pedem pro Roberto Carlos do dia fazer um gol, gente que reclama que só se fala de futebol durante o resto do ano muda sua rotina para assistir exatamente esse futebol.
E ainda porque talvez, lá no fundo, exista em todo viciado por futebol, todo torcedor apaixonado de clube, todo homem ou mulher que vai ao estádio toda semana, compra camisa, chora com as vitórias e se revolta com as derrotas, uma certa inveja do torcedor casual. Inveja de como ele consegue lembrar desse jogo só durante a Copa, inveja de como ele consegue xingar o Neymar durante uma hora e meia mas depois agir como se nada tivesse acontecido, inveja de como ele não correlaciona diretamente o agravamento dos problemas de refluxo e gastrite dele com as duas finais que o clube perdeu ano passado.
O torcedor de Copa do Mundo vive a parte boa do futebol sem a parte ruim do futebol, vive a festa sem o terror, vive a alegria sem o drama, pra ele o futebol são algumas noites de sexo casual à cada 4 anos e não um casamento atribulado onde uma quarta-feira pode ser de pura paixão mas no domingo seguinte você vai dormir dilacerado sem entender porque gasta seu tempo com essa palhaçada.
O torcedor casual na verdade não é um intruso mas sim, talvez, a personificação do que existe de mais puro e bonito no maior evento de futebol do mundo. A Copa do Mundo mais do que uma competição entre nações, mais do que uma disputa entre os melhores jogadores do mundo, mais do que uma discussão de grupo de Whatsapp sobre a validade do VAR, é uma grande festa, uma grande celebração.
E ninguém entende mais uma festa, ninguém se diverte mais numa comemoração, do que a pessoa que chega nela com as mais baixas expectativas, o coração mais aberto, querendo aproveitar ao máximo tudo que acontecer. E se você lembra disso, você percebe que o espírito da Copa é muito mais a sua avó gritando lá da cozinha “mas esse Neymário cai demais, ele tá com verme esse menino?” do que aquelas duas horas de mesa redonda discutindo pra que lado o Messi costuma bater pênalti.
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Nota do editor: esse texto foi originalmente publicado no Medium do autor.
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