A torcida vaiou a seleção brasileira de futebol. É a prova que os quase dois anos de distância não foram suficientes para amolecer o coração do torcedor.
O torcedor que pagou caro foi bastante exigente no empate com a vice-campeã mundial Holanda e na magra vitória contra a vampiresca Romênia. Mas a seleção não jogou tão mal assim. Dizem os especialistas – e o próprio Mano Menezes – que a seleção está em formação. E realmente está.
Destinam vaias e críticas à torcida. Indicam o público dos últimos dois jogos composto por “pessoas não acostumadas a acompanhar o futebol” ou “desligadas emocionalmente” de uma seleção retirante. Concorda? Eu não consegui. Afinal, é bastante simples: basta a seleção não golear para ser ovacionada com uma bela vaia. Sempre achamos legítimo. Por que desta vez foi diferente?
É claro que a coisa varia de intensidade dependendo do momento. Como no período que ficamos sem levar uma Copa do Mundo. O torcedor aplaudia até vitória apertada contra a Venezuela fora de casa. Mas fora de casa. Aqui dentro, não. Não existe show num placar inferior a 2×0. Não para uma torcida mal acostumada.
Acho que todos concordamos que a melhor forma de torcer é apoiar o time incondicionalmente. O maior de todos os exemplos: as torcidas argentinas. Eles cobram na medida certa e sem atrapalhar. A questão é: podemos? Foi na tentativa de responder a essa pergunta que busquei entender como a relação entre a torcida e seu time funciona e dei início, há uns dois anos, a uma série chamada perfil do torcedor.
Os perfis
O desafio era captar a essência de cada torcida. Algo que as unificasse enquanto grupo na forma de sentir e torcer e que, no fim das contas, somado (e elevado ao quadrado) resultaria na complexidade do torcedor brasileiro. Por incompetência, ignorância e falta de tempo, não fui além do eixo Rio-São Paulo, mas acredito ter na amostragem das torcidas mais conhecidas do país elementos suficientes para dar uma ideia da complexidade do que estamos falando.
Obviamente que os perfis causaram algum incômodo devido a seu caráter anarco-antropológico. E ainda devem causar. Em alguns casos, as descrições estão datadas. Fiquem à vontade, por favor, para sugerir dicas para os perfis de outras torcidas. Abaixo, vai o resumo de cada um dos escritos naquilo em que contribuem para o caráter da torcida brasileira, com os devidos links para os textos integrais.
O São Paulo mimou demais o são-paulino
O São Paulo talvez seja o time brasileiro mais parecido com a seleção nacional em número de glórias. Três Mundiais, três Libertadores da América e seis Campeonatos Brasileiros. É tanta felicidade que a torcida ficou mal acostumada.
O são-paulino é o torcedor mais mimado do país. Por isso, só lota estádio em final de Libertadores – e olhe lá. Todo o resto perdeu a graça. Não tem mais isso de ganhar Brasileirão jogando no estilo Muricy. O torcedor do São Paulo quer show, assim como o torcedor da seleção brasileira.
O Flamengo do flamenguista não existe
É possível dizer que todo torcedor tem um pouco disso, mas ninguém se iguala ao flamenguista na faculdade de idealizar seu time. “Flamengo é Flamengo”, diria Ronaldinho Gaúcho. Eu acrescento um vice-versa para amplificar o clima delirante. Pode argumentar o quanto quiser, não adianta. Haverá sempre o profeta Zico a quem recorrer.
Vaiamos aqui dentro, mas em discussões com estrangeiros, não existe argumento contra a seleção brasileira. É a felicidade permanente. Atribuo esse comportamento, em parte, a situação de penúria em que o Flamengo se encontra há anos. E não me parece exagero aplicar o mesmo raciocínio à presença de um mesmo homem à frente da CBF há mais de 20 anos.
O Fluminense perdeu a majestade. O tricolor, não
Deve soar como heresia, mas, nesta tentativa de entender a torcida da seleção brasileira, Flamengo e Fluminense surgem num mesmo plano: o do prejuízo ao time como decorrência da idolatria. A seleção brasileira não nasceu em berço esplêndido (apesar de o país permanecer deitado eternamente nele), mas venceu na vida e comprou um título de nobreza.
Cultivamos um sentimento de nobreza, para o bem e para o mal. Cito Nelson Rodrigues no perfil para provar meu ponto e o repito: “eu vos digo que o melhor time é o Fluminense. E podem me dizer que os fatos provam o contrário, que eu vos respondo: pior para os fatos”. Com a sua Seleção Brasileira não é assim?
O Santos fez do santista um saudosista
Talvez Neymar esteja mudando o perfil da torcida do Santos. Contudo, até que isso se confirme, Pelé ainda será o inigualável ídolo maior. Para ir direto ao ponto, recupero um eloquente trecho do perfil: “a glória do ídolo (Pelé) se cristalizou de tal forma que é impossível surgir um jogador de futebol mais competente do que ele – ainda que de fato surja alguém ou que, antes dele, tenha existido um jogador melhor.”
Pelé também jogou na Seleção e é dos times de que ele participou que lembramos com mais carinho – e que usamos como referência para as equipes formadas desde então. Por melhor que sejam os elencos da seleção, sempre haverá a sombra de 1970 nos lembrando de que tudo poderia ser melhor.
O Palmeirense é o torcedor mais ingênuo do pais
Como consequência disso tudo que foi dito, ficamos bobos quando tem jogo da Seleção. Não interessa se o ataque é Afonso Alves e Jardel. Cobramos com rigidez porque de fato acreditamos que o Brasil pode golear em qualquer situação. O dever decorre da crença. Não fazemos por mal, é mais forte que nós.
Esse comportamento eu vejo muito no palmeirense, o torcedor do futebol inauditável. O Palmeiras só entra em enrascada, esquema de pirâmide, essas coisas, e a torcida embarca junto, porque no início as coisas dão certo (Parmalat, Traffic, Luiz Gonzaga Belluzzo), mas no fim…
O vascaíno não crê no futuro e nem no passado
Talvez seja exagero adicionar um pouco de vascaíno a essa mistura que compõe a torcida brasileira. Minha análise, nesse caso, é datada. O Vasco se livrou de Eurico Miranda há pouco tempo e só agora, depois do primeiro titulo nacional pós-Eurico, começa a perceber que as coisas não precisavam ser daquele jeito.
Ainda não nos livramos do nosso Eurico na CBF e, por isso, estamos atrás na comparação com os evoluídos torcedores do Vasco. Porém, do caráter adquirido pelos vascaínos no tempo de Eurico, talvez tenhamos um pouco da queda pelo ilícito. Trata-se daquele lance da malandragem, da vontade de ver uma boa falta cavada, um Nilton Santos fazendo pênalti e saindo de dentro da área, um Pelé acertando uma bela cotovelada num uruguaio.
O corinthiano ganha quando o Corinthians perde
Ao pisar no Parque São Jorge, chegamos a um terreno insólito. Sairemos (se tudo der certo) por General Severiano graças a uma ligação metafísico-futebolística que aproxima os mundos paralelos em que estão localizadas as torcidas de Corinthians e Botafogo.
São essas duas equipes que provavelmente mais contribuem para a complexidade do torcedor brasileiro em sua vocação para o contraditório. É notório que o corinthianismo é uma doença e, como tal, precisa de um ambiente ruim para se desenvolver.
Essa é minha teoria para explicar a gloriosa passagem do Corinthians pela segunda divisão do Campeonato Brasileiro. Acontece que o corinthiano é um masoquista enrustido, assim como todo torcedor brasileiro.
Numa intensidade bem menor, naturalmente.
É bom sofrer pela seleção. Nem que seja para passar o tempo. Distrai, entende? Talvez por isso a gente goste tanto de reclamar.
Só um botafoguense acreditaria no Botafogo
Costumo dizer que é mais fácil acreditar na existência de Deus do que no Botafogo. E recupero a explicação: “olhe. Árvores, água, céu, ar. Alguém ou algo deve ter pelo menos criado tudo isso. Se for um pouco mais além, você vai considerar que isso tudo a que nós chamamos de natureza necessita de alguma força que a mantenha funcionando. Daí para aderir a alguma religião é um pulo. Mas que indícios, que provas existem para que alguém confie num título do Botafogo perante tantos reveses?”
O que sobra do botafoguense para o torcedor brasileiro é essa fé incondicional no escrete canarinho que evoluiu naturalmente para devoção. Não é tão difícil acreditar na seleção. E você também não sofre tanto por ela quanto pelo seu time. Mas esses elementos todos estão aí fazendo vaiar um time em formação liderado por um técnico que aparentemente sabe o que está fazendo. Fazer o quê? É da sua natureza, meu velho.
Quem não gostar que marque gol.
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