Conservadores de colarinho branco passeando na rua,
apontam seus dedos para mim,
e presumem que gente como eu sucumbirá e morrerá,
mas vou agitar alto minha bandeira de esquisitão.

Hendrix, se o seis fosse nove

A ideia do intrépido revolucionário, que não liga para a opinião de ninguém, o independente altamente individualista promovido pela contracultura estadunidense, tem suas raízes no movimento transcendentalista. Claro, podemos traçá-la até antes, nas ideias de independência não tão pessoais do orgulho insular celta (e então britânico), do orgulho da colônia que se independentiza e começa a fazer as coisas “a seu modo”, ou de inúmeros outras ideias de sujeito ao longo da história – mas o individualismo como excentricidade, aceito, ainda que condescendentemente, na Inglaterra (até o governo Thatcher), só se torna valor com estes estadunidenses ativistas, intelectuais, cosmopolitas e multiculturais do séc. XIX.

Sócrates foi o primeiro “sujeito”, a primeira pessoa a pública e registradamente enfrentar a morte por uma questão de consciência – e não só por uma ideia abstrata, mas uma ideia nada “coletiva”. “Fazer o que, se eu penso desse jeito?”. Só resta tomar veneno, ninguém aguenta uma pessoa assim. O sujeito quando saliente e incomodativo, o grupo (a conspiracy of dunces) não o tolera.

Vivemos então a grande subjetividade feita Deus na figura de Jesus por toda a idade média, até que a renascença e a idade moderna recriam o conceito de sujeito. Literalmente recriam, porque “subjetividade” até então queria dizer justamente o oposto: éramos sujeitos à divindade, mas agora nos objetificamos humanos – o sujeito moderno é a objetificação da centelha divina, o livre arbítrio, sua transformação em foco efetivo, ao contrário da gnose ou entrega perante a vontade divina. No cristianismo, somos livres para escolher o bem e a Deus – na idade moderna, nossa própria noção de liberdade se torna o critério de bem, nosso deus.

O sujeito vira objeto e vice versa, e hoje o materialismo prevalente mistura ideias contraditórias de superindividualismo e da ausência de sujeito. É por ser um supremo objeto, não divino, que nossas ações não respondem a ninguém. Nem grupo, nem consistência ou coerência com passado ou futuro, mas numa liberdade hipostasiada infinitamente presente, e assim infinitamente ausente em uma banalidade sem exame: o indivíduo apocalíptico, arrebatado na atemporalidade da desconsideração por tudo e todos.

Mas, que ainda assim, acha que está fazendo sua parte.

Antes disso, naquele passo histórico intermediário, em que o sujeito já havia sido “inventado”, mas que ainda se inseria numa cultura e respondia aos semelhantes, temos os transcendentalistas.

Thoreau, aluno de Emerson, culmina o ideal de sujeito oitocentista duvidando de todo o esquema de coisas – em plena revolução industrial, principalmente das falsidades ligadas a ética de trabalho e “keeping up with the joneses”, manter as aparências e a fachada de sucesso perante uma sociedade constituída quase que inteiramente por panacas.

E não é que, por todo lado, no séc. XIX e desde o início da idade moderna, muitas pessoas não estivessem desafiando o status quo de todos os modos possíveis: a questão é que, no mais das vezes, tratava-se de um movimento, juntar pessoas em torno de uma ideia de mudança. O experimentalismo de Thoreau podia ter validade para outros, mas a ideia é que cada um imitasse essa centelha independente – a ideia de fundar um novo clube ou mudar as coisas num sentido global, e não individual, é evitada em Thoreau exatamente pela conexão com a antiguidade clássica – e o entendimento particularmente oitocentista desse classicismo.

A ideia mesma de “movimento” nas artes e no intelecto, como um clube de pessoas que partilham estéticas e produções similares – algumas vezes estritamente definidas e reconhecidas em manifesto – é oitocentista. E os “transcendentalistas” justamente são os primeiros a desafiar o rótulo, coisa que os torna “proto-pós-modernos” – hoje, a não ser como ironia ou nostalgia, ninguém mais se proclama parte de um movimento. No lado pejorativo, somos cínicos demais para tanto, no lado positivo o cinismo tem sentido: olhamos para toda sorte de ideologias ou aglomerações sociais em torno de ideias, e a tanta confusão que isso muitas vezes causou, que não queremos mais fazer parte de nada disso.

Somos todos adeptos do grouchomarxismo: não queremos fazer parte de nenhum clube que nos aceite como sócios.

O ideal de desobediência civil de Thoreau, que famosamente inspirou Gandhi, vem da noção que certa resistência é válida perante mesmo as decisões e leis de um governo supostamente democrático – que dizer perante mores ou expectativas de seus vizinhos. No caso, Thoreau se recusou a pagar impostos a um governo que promovia uma guerra que ele considerava injusta – e foi para a cadeia por isso. E hoje mesmo o Papa considera válida a “objeção de consciência”, isto é, uma funcionária poder ser demitida (segundo a lei), mas não poder ser condenada moralmente, ao se recusar a servir alguém ou algum grupo (no caso, bolo de casamento a homossexuais). Uma reviravolta extremamente irônica do uso da desobediência civil.

Caso queiramos entender como a ideia de liberdade individual se tornou um produto, e um verdadeiro aprisionamento na subjetividade e na responsabilidade infinita por escolhas ínfimas, irrelevantes, e constantes, precisamos nos referir aos transcendentalistas, e a como eles foram apropriados pelos beats e hippies, e enfim tudo isso foi incorporado em empresas que explicitamente nos vendem esse ideal, a começar pela própria Apple – mas passando por cigarros, automóveis, roupas, refrigerante, o que for.

Albert Brooks dirigiu uma comédia lançada em 1985 sob o título Lost in America. Nesse filme um casal almofadinha, inspirado por Easy Rider, resolve largar os empregos e sair pelos EUA num motorhome. Num determinado ponto Albert se pergunta, num esquecimento muito apropriado, como os motoqueiros do filme afinal tinham dinheiro para suas aventuras. A esposa rapidamente lembra “eles traficavam drogas”: e de fato as cenas iniciais de Easy Rider se referem a uma compra e venda de cocaína (que inclui um Phil Spector em óculos de aviador amarelos, o que se tornou uma grande tendência nos anos subsequentes).

Easy Rider é icônico por um sem número de motivos. O fato dos motoqueiros serem traficantes nem é computado, porque é uma última transação com os ratos antes de usufruir a estrada “sem destino”, como ficou a tradução do titulo do filme no Brasil. O que mais tiramos do filme é como hippies sujos e gente esquisita era discriminada, e que a liberdade american way não é bem assim.

O filme era, justamente, independente, “indie”. Foi escrito e filmado com grande liberdade criativa, e acabou um sucesso comercial. Porém, o fato é que exatamente nessa junção, em 1969, morre a inocência da contracultura estadunidense – que começou com os transcendentalistas.

O valor da “self-reliance” de Emerson, professor de Thoreau dizia respeito a um individualismo ou independência que se embasava em originalidade e “não precisar do aval dos outros”. No entanto o que entendemos por indie ou independente, num sentido comercial, significa “não depender do aval do big money”. O aval do público, no entanto, redunda inevitavelmente no aval do big money – e mostrar ao capital como se faz dinheiro é a grande lição da arte independente, o que por si só já revela sua contradição inerente.

O cinema independente de Roger Corman culminou em Easy Rider, feito por seus discípulos, e na grande cinematografia estadunidense dos anos 70. No meio disso o grande estúdio foi superado, fagocitou sua separação, e cuspiu o blockbuster nos anos oitenta: reaproveitando e inserindo no mercado justamente aqueles tantos talentos que surgiram na cena independente.

E, vinte e poucos anos depois, o revival do cinema independente nos anos 90 faz o mesmo trajeto, com o adendo irônico, já presente no grunge e nos tarantinos da vida da autoconsciência de se tratar de um produto – a independência agora autoconsciente e cínica quanto a sua inevitável cooptação pelo mainstream.

E é o cinema como veículo de propaganda que acaba vendendo justamente a imagem do maverick estadunidense louvado por Emerson, algumas vezes representado pelo policial que não obedece regras, ou pelo adolescente nerd e excluído que se revela o tal. Agora o valor americano ao estilo Dr. House é apropriado pelo mundo inteiro: todo mundo exerce a mesma banalidade generalizada de se achar especial. E mesmo sem os feitos extraordinários de personagens que no fundo são super-heróis, achamos que podemos agir como cretinos, assholes. Assim, o lado impossível do Dr. House, mas sem cura alguma, sem genialidade nenhuma.

Liberdade american way, Thoreau e Emerson, os Beats e os Hippies, como “não estou nem aí” e o ativismo como produto: uma capinha diferente no celular, cerveja artesanal. O normcore e a autoconsciência estilosa do hipster. Mas, acima de tudo, participar de todos os mesmos debates e ritos que todos participam, só que se achando muito diferente. O estado de diferença, como a liberdade, nada mais do que uma commodity.

E no meio disso, a verdadeira originalidade nem tem espaço para brotar ou ser reconhecida. O que, de fato, é bom para ela. Hastear a bandeira freak no meio de tantas bandeiras freak de camelô pode ser um gesto bem vazio.

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em <a>tzal.org</a>."

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