Voltou pra casa do cinema e ficou pensando na avó. Tinha visto Aquarius. Que filme! Logo nas primeiras cenas, se comemorava o aniversário de uma tia já idosa: enquanto os sobrinhos-netos faziam uma homenagem, ela perdia o olhar numa cômoda e lembrava das boas chupadas que recebera sentada ali.

“Eu fazia um sucesso! Meu pai queria até me trancar dentro de casa” contava sua avó. Lembrando disso, a neta passou a questionar se tinham orais e paus duros perdidos no brilho dos seus sorrisos.

Sua avó. Era sempre assim, “minha avó”. Com pronomes possessivos e substantivos genéricos. Gostava tanto dela, mas não sabia nada sobre a vida de Lucélia Amaral do Santos. Nem sequer sabia o que ela fazia todos os outros dias da semana, além de preparar o almoço de domingo.

E olha que Dona Lucélia tinha um tanto de histórias… Danada nos tempos de juventude, os pais a deixaram sozinha por um final de semana, e ainda lhe atolaram de tarefas domésticas para que não sobrasse tempo pra bobagens. Mal botaram os pés pra fora de casa, e ela ligou pro pretende para que ele lhe desse uma mão ajudando a lavar o quintal. O tropeção na mangueira foi fatal e, aos 17 anos, Lucélia se viu grávida e obrigada a casar com quem ela só queria uma aventura.

A avó teve passado: sexo, desejo, atrevimentos e um corpo vibrante. Mas e se a matriarca tivesse também presente? Quantas vezes a avó não questionou “como estava a faculdade, os ficantes, a vida?”. Só agora ocorria à neta que ela nunca devolveu estas perguntas. Era como se nem lhe tivesse passado pela cabeça que avó ainda tem vida além da cozinha

Das tantas coisas que a neta não sabia, uma era que assumir o papel de matriarca, coisa que Lucélia fazia tão bem, foi um fardo duro de carregar. A avó deu a luz a primeira filha e de tanto ‘mãe’ pra lá, ‘mãe’ pra cá, esqueceu-se de si. Só se lembrou quando, com os filhos criados, chegou a viuvês.

Noite após noite, olhava-se nua no espelho e chorava saudades de si mesma. Chorou até o dia que não teve mais lágrimas. Então, passou os dedos por cada ruga e pensou no quanto gostaria de se sentir desejada de novo. Abraçou seus defeitos e, pensando em como gostaria de ser tocada, tocou-se.

Aos poucos, resgatou os vestidos decotados. Foi à feira comprar legumes e ganhar elogios. Deu os bons-dias ao seu toninho do gás e deixou que ele percebesse que ela o olhava. Dançava no recreativo e se divertia com os telefones que recebia de quando em vez.

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Os bons dias de seu Toninho foram se alongando. Dia sim dia não, seu toninho acabava entrando para conferir se a mangueira do gás ainda funcionava bem. Preenchiam os tempos fazendo-se companhia. O sexo era diferente daqueles da juventude. Não tinham mais os vigores das velhas cavalgadas indômitas, mas valorizavam até mesmo as sensações mais suaves, daquelas que, quando jovens, chamariam de tediosas. Adorava saborear as delongas. Não precisava mais desassossegar-se com as possíveis chegâncias dos filhos.

A neta não fazia a menor ideia do flerte, mas agora raciocinava que era estranho a avó precisar de gás com tanta frequência. Sempre que ela passava o dia na casa da matrona, seu Toninho aparecia no portão perguntando como é que tava o botijão. Então ela lembrou que, certa vez, passando as férias na casa da vó, desceu de madrugada para pegar água e a flagrou dormindo no sofá enquanto passavam uns soft porns na tv.

Na época riu da coincidência. Hoje duvida de seus julgamentos e remordia todos os menosprezos que cometera. Só agora concebia que, ao ignorar a sexualidade na velhice da avó, também estava negando seus próprios fervores futuros. Ao pensar que apenas a carne jovem presta pro sexo, estava se entregando ao mundo onde vamos nos enjeitando, nos desamando, a medida que envelhecemos.

Enquanto a neta pensava sozinha, numa noite de sábado, sua avó, num quarto que não era dela, voltava a prender os cabelos na trança ainda nua.  Seu toninho admirava seu pentear e já temia a pressa nos dedos da senhora. “Amanhã minha filha e meus netos vem comer em casa. Tenho que ir, Toninho, senão o almoço não sai”.

Horas depois, a campainha toca e Dona Lucélia leva a mão à cabeça sentindo as badaladas nas próprias têmporas. “Mãe, a senhora tá abatida, que foi? Onde a senhora tava ontem a noite que não atendia o telefone. A gente fica preocupado. A senhora nessa idade…”

Agora a neta podia ver, por através da rugas, a expressão contraditória de satisfação e ressaca. Ela abraça a avó e, tendo piedade da dor de cabeça, sussurra:

“Foi boa a noite, Dona Lucélia?”

Abrindo um sorriso faceiro, a avó confia à neta: “Depois a gente conversa minha filha…“

Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro <a href="https://www.amazon.com.br/Amulherar-se-repert%C3%B3rio-constru%C3%A7%C3%A3o-sexualidade-feminina-ebook/dp/B07GBSNST1">Amulherar-se" </a>. Atualmente também sou mestranda da ECA USP