O despertador toca em uma manhã pós-natalina, me chamando para o treino matinal. Nesse momento é que surge o elemento que nos faz desistir das coisas importantes. Não, não é o medo: é a sua irmã, a preguiça.

Ela começa a tentar te seduzir com suas artimanhas perversas e surpreendentemente lógicas. A preguiça diz: “Olha a hora, são 7:30 da manhã, você vai treinar essa hora nas férias?” Eu respondo afirmativamente.

Ela insiste em discutir, para que eu não consiga levantar da cama, tentando de todas as formas me deixar inerte, estagnado, parado. Minha namorada liga, falando que não vai treinar hoje. Mais um fator me puxando para o abismo. Adoro a companhia dela. Me faz correr mais e melhor. Acho muito bom ela treinar comigo, cedo. É bom para mim e também ajuda a saúde dela. Mas não começarei com desculpas aqui, não vem ao caso. O caso é que ela não vai me acompanhar hoje. Eu continuava pensando sobre o treino de hoje, e como correr cansa.

Ali, na cama, estava refém de uma força que acompanha todas as pessoas do planeta, uma força tão poderosa que nos impede de evoluir e nos tornarmos pessoas diferentes. Decido não dar ouvidos para ela e levanto.

Vou cambaleante até a minha janela para ver como está o tempo. Está cinza-tristeza.

– Olha esse tempo – diz a preguiça. – Não vá treinar, volte para sua cama. Afinal, você já treinou sábado…

– De fato, o tempo está feio. E eu treinei sábado, mesmo. Mas tenho que ir treinar hoje, tenho que conseguir me vencer.

Mesmo assim, fito minha cama. Ela parece tão sedutora. E está frio. Não quero ir. Começo a caminhar em direção a ela, me rendendo ao desejos da preguiça, mas então eu lembro da sensação de correr, do vento na cara, do orvalho na grama, da cor das flores, sons de cada passo meu em direção ao final, de como é incrível a sensação de terminar um treino. Estou pensando também na minha evolução desde o começo dos treinos, consigo correr muito mais agora do que antes, posso correr por várias léguas e ainda ter fôlego.

Fôlego. Essa palavra tem um sentido diferente para mim, não é fácil ter fôlego com um pulmão estragado como o meu. Como se não fosse difícil o suficiente correr, eu ainda tenho que vencer mais essa barreira.

A preguiça grita:

– Não vai treinar! Está frio! Você vai acabar doente, seu teimoso!

– Se eu ficar doente, pelo menos foi treinando! Antes ficar doente fazendo algo do que fazendo nada, como você quer!

– Eu estou tentando te poupar, você não entende?

– Sim, perfeitamente, esse é o seu papel. Se você não existisse, as coisas seriam muito fáceis, não é? Todos estudariam muito, todos cuidariam da saúde, todos teriam uma vida muito mais ativa, tudo seria diferente sem você. Mas você esteve desde o primeiro dia de nossa existência terrena nos provocando a sermos piores do que nos podemos ser. Não te aceito.

– Mas você não tem que me aceitar. Eu sou você.

– Você pode fazer parte de mim, mas não vai me dominar. Eu não te aceito.

– Amigo, você vai cair.”É só esperar, jacaré, a lagoa há de secar.”

Vou tomar o meu café e parece que o tempo aperta. O frio aumenta e a garoa também. Olho pela janela e não há ninguém na rua, apenas um silêncio profundo e a preguiça falando para que eu volte para a cama porque é dia 26 de dezembro e “isso lá é dia de sair para treinar?” O que pode ser mais desanimador do que isso?

Leia também  Ele só queria te comer

Não quero treinar, mas preciso. Preciso pois não quero ser o mesmo de ontem, quero poder ter controle sobre as minhas ações. Que tipo de pessoa se deixa vencer pela preguiça? Não o meu tipo. Ao menos não hoje.

Volto para o meu quarto e me troco. Nesse frio não existe roupa que sirva. Se você coloca calça e blusa, passa calor o treino todo. Se coloca uma bermuda e uma camiseta, passa frio. Correr de moletom, nem pensar. Decido por ir de bermuda e camiseta, porque prefiro passar frio e depois me esquentar com a corrida do que ficar o treino todo passando calor com a calça e a blusa. Tiro o pijama e um frio infernal entra em todas as vértices do meu ser. Ocorre mais um devaneio: “Nossa, como está frio hoje. E pior, lá fora está chovendo. Mas não é verão?”. Sento na cama para refletir sobre se eu vou treinar ou não, a preguiça aparece:

– Você já está na cama, tão quentinha. É só se cobrir e curtir as suas férias da faculdade.

– Mas eu tenho que ir treinar hoje.

– Você não tem que ir treinar, você pode ficar aqui, tranquilo com a vida.

– Eu tenho que ir treinar.

– Cara, seja razoável. Olhe o tempo. Sua namorada já desistiu e foi dormir. Junte-se a ela.

Nesse momento perdi a paciência com a preguiça e esbravejei:

“Escuta aqui. Eu treino para encontrar uma segunda natureza, não essa defeituosa da qual você faz parte. Uma com que eu me sinta bem e satisfeito. Esse seu papo de ‘você não precisa’ já deu, ok? Quem você pensa que é para me falar o que eu preciso ou não fazer? É uma coitada que vive à custas dos outros! Muitos aceitam seus conselhos absolutamente ‘sábios’ e ficam travados na vida.

“Não vai funcionar comigo, sabe por quê? Porque eu sou diferente de você, eu não quero ficar arrumando desculpas. Quem se ferra com isso sou eu, não você. Cada vez que você tentar me desanimar eu vou usar isso como motivação. Está chovendo? Eu vou correr tão rápido que a chuva vai secar em mim. Está frio? Eu vou correr até ficar tão quente que nenhum vento vai me incomodar. Minha namorada não vai treinar? Eu vou correr o dobro para compensar a falta dela. Nada que você me falar eu vou tomar como verdade, pois você é perversa. Você tenta me transformar em você. E isso eu não vou permitir.”

– Você é muito infantil – respondeu ela. – Só está fazendo birra para correr, mas sabe que não faz diferença.

– Faz diferença. Se eu correr eu me torno diferente. Não me torno você.

Então eu finalmente saio e vou correr, depois de finalmente ter vencido o primeiro confronto do dia. Que foi comigo mesmo, o oponente mais difícil.

Autor Anônimo

Identificação coletiva e anônima, usada por autores ou leitores PapodeHomem que querem escrever artigos ou contar suas histórias sem abrir mão do sigilo.