Ontem, 24 de junho, a Presidenta Dilma propôs a realização de um plebiscito para decidir sobre a convocação de uma Assembléia Constituinte que seria, segundo a ideia, dedicada para tratar da reforma política.

A proposta, na verdade, é uma reciclagem de uma outra levantada pelo ex-presidente Lula, em 2006, que não emplacou na época e enfrentou fortes críticas de especialistas. É pelo contexto recente que escrevo, pra tentar esclarecer alguns pontos, bem como falar da ingenuidade que é acreditar que a mudança se alcança mudando apenas o texto.

O que é uma constituinte?

A primeira noção que se tem que ter sobre o Poder Constituinte é a de que ele é um poder ilimitado.

Luis Roberto Barroso, futuro ministro do Supremo Tribunal Federal, explica com calma:

Link YouTube | Isso devia ser ensinado nas escolas

Pense na etimologia da palavra. Constituinte é aquilo que constitui, que estabelece as regras que se impõe até mesmo ao conteúdo das leis, que devem obediência à Constituição.

Por isso, o Poder Constituinte é um poder, de fato, fundado nas forças determinantes da sociedade.

O abade Seyes, no livro Que é o Terceiro Estado?, observando a Revolução Francesa e o processo de ruptura que se desenvolvia, afirmou que a Constituição cria e organiza os poderes políticos (Legislativo, Executivo e o Judiciário), que são os poderes constituídos.

Uma assembléia constituinte limitada, ou restrita a um tema, seria, portanto, algo contraditório, que nunca ocorreu na história. É claro que, como diz o futuro Ministro Barroso no vídeo acima, a realidade fática pode derrotar essa noção e termos, verdadeiramente, uma constituinte limitada. Mas deve ficar claro o perigo que existe ao lascar o adjetivo “constituinte” em algo.

O pacto que fizemos em 1988

O Poder Constituinte, pela sua amplitude, não se manifesta a todo momento, pelo risco de instabilidade que pode gerar. Basta pensar no caos que seria se repactuássemos a estrutura do Estado a cada momento de crise.

Em razão disso, o Poder Constituinte originário surge em momentos de virada histórica, em que se exige um rompimento drástico com a ordem vigente que justifique a utilização de um poder ilimitado.

Em 1988, com a redemocratização, vivemos um momento assim e nasceu uma Constituição de grande beleza, que trouxe diretrizes essenciais para que o STF pudesse promover a recente ampliação dos Direitos Humanos, como representam as decisões sobre a União Homoafetiva, sobre a interrupção terapêutica da gestação dos fetos anencefálicos, a legalidade das cotas, dentre outros.

Apesar de certas críticas — vindas de gente qualificada como o José Sarney — é importante entender que nossa crise não se relaciona propriamente com o conteúdo da Constituição, mas com o déficit de concretização dela.

Ulysses Guimarães e a Constituição de 1988
Ulysses Guimarães e a Constituição de 1988

O que é “Reforma Política”?

A justificativa dos defensores da mini constituinte também representa a fonte do seu maior problema. Em uma mini constituinte, a aprovação de determinada proposição é mais fácil do que o que se exige hoje pela Constituição de 1988. Além disso, com a convocação de novos representantes, desiteressados pelas regras de eleição, tornaria possível fazer passar algumas propostas que não descem na goela dos atuais representantes, como a do voto distrital.

Acompanhe meu raciocínio.

Tendo em mente aquela carga “ilimitada” que acompanha o que se chama de constituinte. O que é que pode ser considerado reforma política exatamente? Só a forma como se elegem representantes? Ou quem sabe também a relação entre os poderes? Ou ainda o sistema de controle dos poderes?

Sobre a relação entre os poderes, me vem na cabeça a proposta recentíssima de emenda constitucional que submetia as decisões do STF ao Congresso. E se isso for considerado “reforma política”? E se uma proposta assim for aprovado nesse ambiente “mais fácil”? Que perspectivas teremos para o Estado Brasileiro?

Lembro que ainda está para ser julgada pelo STF a legalidade da anistia que o Novo Código Florestal deu aos poluidores. Se o julgamento ocorrer depois que a possível constituinte da reforma política aprove a submissão do STF ao Congresso — de onde saiu o Novo Código Florestal — será difícil controlar os abusos cometidos nesse caso contra o meio ambiente.

Já quanto ao controle dos poderes, lembro da agora famosa PEC 37 e da ânsia com que se defende — equivocadamente, ao meu ver — o fim do foro por prerrogativa de função.

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Lembro também que, recentemente, tivemos Senador graúdo defendendo o fim dos partidos políticos. Então me desculpem se não acho o clima dos mais favoráveis para se pensar em uma constituinte.

Problema de se contornar a constituição

Estamos mesmo prontos a rever o pacto de 1988 com essa intensidade? Quais os perigos que moram aí?

alemanha

Quando a proposta primeiro surgiu, ainda no governo Lula, Paulo Bonavides não teve dúvidas:

“Isso representa um golpe de estado branco, que já se tentou várias vezes. A cerca de dez anos eu fiz uma denúncia à nação para que reagíssemos e tolhêssemos a marcha do golpe e essa tentativa de ferir de morte a Constituição.
Essa tentativa agora está sendo ressuscitada pelo egoísmo das elites brasileiras, as que estão à frente do processo político e tentam desvirtuar a CF/88, exatamente no momento em que celebramos seus 20 anos. Querem atraiçoá-la, querem feri-la mortalmente e seqüestrar do povo brasileiro o texto de sua liberdade.”
Do site Migalhas

A utilização indiscriminada de processos constitucionais, pelas “facilidades” e pelo poder, foi prática recorrente no nazismo para, pouco a pouco — e com aparente apoio popular –, contornar garantias constitucionais importantes. Sobre o risco de isso acontecer por aqui, é só lembrar desse tipo de coisa.

Por isso há tanta cautela ao falar do tema.

Além disso, dá pra apontar uma certa tentativa de desviar o foco com a promessa de um ato grandioso. Já escrevi aqui sobre a estratégia da legislação simbólica. Trata-se de uma estratégia de resposta política que usa a produção de normas para dar a aparência de atividade.

Cria-se, portanto, a ideia de um ato excepcional, diferente de tudo que já vimos, e com isso se cria a impressão de que algo está sendo feito, apesar dos riscos já explicados.

E, no fim, desnecessário.

Precisamos de uma constituinte para as reformas propostas?

Alguém pode me acusar de utilizar a tática FUD para deslegitimar o processo e, apontando riscos inexistentes, defender que se mantenham as coisas como estão.

Questionado sobre a proposta da constituinte da reforma política, o ex-Ministro do STF, Ayres Britto, lembrou que já existiram processos de mudança profunda no país sem que fosse necessário partir pro extremo proposto. Ele deu exemplos práticos.

Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal
Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal

O Congresso convocou um referendo para decidir sobre o desarmamento no Brasil. Momentaneamente, portanto, deixou de lado a democracia representativa, por meio da qual deputados e senadores fixam os marcos normativos do país, e convocou a população a se manifestar por meio da democracia direta. Mas o Congresso passou ao povo o poder de deliberar em seu lugar, sobre uma decisão que ele mesmo poderia tomar.

Além disso, temos o exemplo maior de Lei que passou sem constituinte. Bastou apoio popular. A Lei da Ficha Limpa. Qualquer outra reforma profunda pode se desenvolver pelos meios que já existem, sem os riscos que acompanham uma Constituinte. Basta canalizar o mesmo apoio.

Para começar o papo

Vamos nos lembrar que “a desordem é o melhor servidor da ordem estabelecida” (Sartre) e que, às vezes, propostas aparentemente revestidas de democracia escondem perigos enormes — é bom lembrar que Pilatos jogou pra platéia e ela libertou Barrabás.

Fosse o caso de se seguir os meios já conhecidos de reforma da Constituição, não haveria problema algum. Mas é bom lembrar: o povo saiu às ruas não pra pedir uma nova Constituição, mas para defender os valores que já estão na atual. E é muito mais fácil escrever normas do que garantir que elas sejam aplicadas.

Nota do editor: Modificamos o título do texto, pois o original “Convocação de uma constituinte e o cheiro de golpe” por premissa gerava reações muito exaltadas. Para facilitar e melhorar o tom, resolvemos adotar o atual, mais convidativo ao diálogo.

Tiago Xavier

Tiago Xavier é atleticano e bacharel em direito. Nessa ordem. Twitta pelo <a title="Tiago">@tcxavier</a>."