Ainda que uma bela tarde de sol combinasse muito melhor com a belíssima Baía de Guanabara no Rio de Janeiro, naquele dia o céu estava nublado. Mas o tempo fechado nunca foi um problema para Santiago Lange, pelo contrário, o vento que traz a chuva indesejada para os banhistas é o mesmo que traz presságios de boa sorte para este velejador argentino. E por mais que ele ainda não soubesse, naquele dia ele precisaria tanto do vento quanto da sorte.

Trata-se de 16 de agosto de 2016. Data da regata final olímpica das duplas mistas da categoria Nacra 17, a mais rápida da competição. A dupla argentina formada por Lange e Cecilia Carranza Saroli não tinha vencido nenhum das regatas anteriores, mas tinha obtido a melhor média e estava na liderança da competição. A suposta vantagem, porém, logo se tornou um fardo e quando a corneta soou dando a largada para a prova, Santiago ainda não sabia, mas estava prestes a enfrentar uma completa retrospectiva de sua vida nos 20 minutos seguintes que lhe separavam do sonho de conquistar um medalha de ouro olímpica.

Para chegar até o momento da largada (tanto de sua carreira, quanto de sua regata final), Santiago contou com uma família de tradição e muito talento na vela. Seu pai, competia com barcos da Marinha e desde pequeno ele e os irmãos se acostumaram a viver mais na água do que na terra. Não é exagero dizer que na família Lange, o amor pela água corre nas veias.

Mas nem toda a tradição familiar e o talento inegável de Santiago foram suficientes para convencer seus pais de que ele deveria se dedicar a velejar e nada mais. Sendo assim, Santiago e um amigo de infância que compartilhava da mesma vocação foram juntos mandados para a Inglaterra para estudar desenho naval. Na cabeça seus pais, a paixão de Santiago pelos barcos seria canalizada para sua construção e não mais para a competição.

Não demorou muito para que o plano fosse por água abaixo (sic). O dinheiro que seria suficiente para mantê-los durante um ano no exterior foi gasto em três meses uma vez que a dupla, ao invés de se dedicar aos estudos, resolveu competir escondido em regatas internacionais. As quais Santiago venceu a maioria. Quando finalmente Santiago convenceu os pais de que deveria se dedicar integralmente ao esporte profissional, já tinha o que muitos consideravam uma idade avançada para o esporte.

A idade também era um problema na regata final disputada no Rio de Janeiro. A vela já é um esporte que exige muito do corpo de um atleta: equilíbrio, força, capacidade respiratória; fatores que vão se perdendo com o passar dos anos. Na categoria que Santiago resolveu competir, ainda mais. Pela velocidade, leveza e dinamismo do barco, era impensável que Santiago, um atleta de 55 anos, de longe o mais velho da modalidade, sequer disputasse uma competição como essa. Quanto mais chegar na regata final, liderando-a.

O seu talento era tanto, porém, que a habilidade e a experiência compensava tudo. Foi assim, que o destino começou a colocar outros problemas na jornada épica de Santiago e sua companheira Ceci. Ao cometer uma infração na largada, a dupla foi penalizada tendo que dar uma volta completa no próprio eixo e com isso acabou ficando por último, há pelo menos 100 metros de distância do penúltimo colocado.

Com essa penalização, a vantagem de Santiago e Ceci estava acabada. Isto porque a primeira combinação possível para que eles fossem campeões – chegar entre os três primeiros da prova – estava descartada. Em outras palavras, mesmo na liderança do quadro geral, os argentinos já não dependiam mais de si próprios. Eles teriam que fazer o que é chamado de uma prova de recuperação.

Santiago, porém, já estava calejado de tanto se recuperar ao longo da vida. Em 1988, em sua primeira olimpíada, ele teve que superar a falta de dinheiro, patrocinadores e apoio do estado para poder competir. Tanto que teve que usar velas emprestadas. O resultado não foi dos mais satisfatórios. Mas Santiago insistiu. Tentou de novo conquistar uma medalha em Atlanta-1996 e em Sydney-2000, ambas sem sucesso. Estava impaciente, cansado, pensava que o máximo de sua carreira era mesmo uma participação olímpica, não uma medalha.

Desistir, porém, não fazia parte do seu repertório e novamente, em Atenas-2004, ele se juntou a um velho companheiro e formou uma dupla que conseguiu a classificação na categoria Tornado. A crise pela qual a Argentina passava novamente, porém, afetou a capacidade do barco. Santiago e Carlos juram que fizeram as melhores regatas que poderiam ter feito. Não cometeram nenhum erro. Competiram de igual para igual. Mas perderam o ouro. Acabaram com o bronze.

A indignação durou quatro anos. Até que os dois tiveram nova chance em Pequim-2008. Na obsessão por não cometer nenhum erro e não deixar escapar novamente a vitória, foram para a China treinar. Perceberam que as condições naturais eram desfavoráveis, havia pouco vento. Se preparam o melhor possível para um situação como esse. Mas quando a competição estava prestes a começar, a aproximação de um tornado pegou todos de surpresa. Terminaram a primeira regata em 13º de 15 competidores. Tentaram se recuperar nas próximas. Acabaram novamente com o bronze.

Era mais, muito mais, do que a maioria sonharia conquistar na vida. Um atleta com duas medalhas olímpicas já é um felizardo, ainda mais considerando a idade que Santiago tinha na ocasião: 43 anos. Ele resolveu parar. Na aposentadoria trabalharia como técnico e daria todo o incentivo para que uma nova geração, incluindo seus próprios filhos, tentassem chegar onde ele nunca tinha conseguido: o lugar mais alto do pódio.

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A ansiedade e o nervosismo de ver seus filhos competindo, porém, não faziam bem à Santiago de modo que ele logo desistiu da ideia de ser treinador. Não suportava acompanhar a competição de fora, sem poder fazer nada. Sua inquietação era tanta que ele precisou tomar uma decisão difícil: retomar sua carreira. Quando conheceu Cecília, convidou-lhe para ser sua parceria na tentativa de uma nova classificação para os Jogos Olímpicos. Ela ficou sem reação, duvidava da capacidade de Santiago de competir em alto nível novamente, afinal de contas, quando ele estava em sua primeira olimpíada, Cecília tinha apenas 1 ano de idade.

Cecília também duvidou quando, na regata final, Santiago resolveu fazer uma rota totalmente diferente dos barcos que estavam a sua frente na tentativa de recuperar as posições perdidas na largada.

Estavam em último lugar quando ela olhou pra trás e disse: "velho, é melhor que você faça uma mágica". E ele respondeu: "calma, menina, vai dar tudo certo."

A estratégia deu mesmo certo. O barco argentino estava muito próximo do 9º lugar quando contornou a primeira boia. Na segunda, já estavam em 6º e o sonho de conquistar pelo menos uma medalha se reaproximava. Mas pouco a pouco, o impensável ia acontecendo. Santiago e Cecília estavam na disputa pelo terceiro lugar que lhe daria o ouro, quando numa ultrapassagem questionável foram punidos novamente.

Dar uma volta no próprio eixo era ruim. Dar uma volta no próprio eixo àquela altura da regata, era a pior coisa que poderia ter acontecido com eles. E isso significaria estar alijado de qualquer chance novamente. Significaria, se Santiago não tivesse enfrentado algo muito pior antes.

Da decisão de fazer uma dupla com Cecília até a classificação para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, não passou nem um mês. Na primeira etapa classificatória que participaram juntos, os argentinos se consagraram campeões mundiais e garantiram uma das vagas na categoria que seria disputada pela primeira vez numa olimpíada.

Santiago ficou desconfiado. Nada em sua vida tinha vindo tão fácil. O sonho de disputar uma olimpíada junto com seus filhos estava próximo demais. Juntos, à cada etapa classificatória, pais e filhos disputavam as competições em busca de uma segunda vaga para a família quando Santiago começou a ficar doente com cada vez mais frequência. Resfriado, dores, febre, insuficiência respiratória… Resolveram fazer uma bateria de exames. Os médicos não sabiam o que acontecia com ele. Até que um deles deu a temida notícia: Santiago estava com câncer de pulmão.

Segundo os médicos, apenas 3 em cada 10 pacientes com esse tipo de tumor tem condições de operar. E Santiago era um desses casos. Mas não poderia esperar nem mais um dia. Tanto porque uma espera poderia ser fatal. Quanto porque ele queria, acima de tudo, estar preparado para disputar os Jogos Olímpicos novamente.

No dia de sua operação, seus filhos tinham uma etapa classificatória e Santiago exigiu que eles não abrissem mão do sonho de disputar os Jogos Olímpicos para ficar de braços cruzados do lado de fora de uma sala de cirurgia. Poderia ter sido um final trágico. Mas a operação foi um sucesso. E a classificação também.

Agora, superado o maior obstáculo, restava a ele retomar a preparação para chegar o mais próximo possível da conquista de uma medalha nas águas do Rio de Janeiro.

Assim como o processo de recuperação do câncer, a recuperação da segunda punição na regata final foi dura. Não havia nem um segundo a perder. Era, sem dúvidas, o maior desafio de sua vida.

Chegar entre os três já não era mais uma opção. Para garantir pelo menos uma medalha de qualquer cor, era preciso chegar entre os cinco primeiros. E foi então que quando todos viram o barco cruzar a linha de chegada na sexta colocação, todos achavam que o sonho tinha acabado, que tanto esforço tinha sido inútil. Santiago e Cecília voltariam para casa apenas com a frustração de ter chegado tão perto e não ter alcançado.

Foi então que Cecília, dentro da água fez as contas. Ela tinha visto a Austrália ganhar a regata e com os demais resultados, eles terminariam com a prata. Mas Cecília estava enganada.

O motivo? Ela tinha confundido a bandeira da Austrália com a da Nova Zelândia.

E com a vitória dos neozelandeses e não dos australianos, além da combinação da ordem de chegada dos barcos seguintes, a Argentina era ouro. Santiago finalmente chegava lá. Tinha apenas um dos pulmões. Mas agora tinha três medalhas olímpicas, uma delas, a tão sonhada medalha dourada.

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Essa história foi retirada do excelente mini-documentário produzido pelo Olympic Channel com o apoio de Bridgestone. Para quem quiser ver toda essa história com muito mais depoimentos, trilha sonora e belíssimas imagens, recomendo fortemente assistir o vídeo. Para isso, é só clicar em qualquer uma das imagens desse post, ir para o Youtube e ativar a legenda em português.

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Após um longo e tenebroso inverno, a Mais que um jogo está de volta. Esta é uma coluna de autoria de Breno França que usa acontecimentos esportivos para nos ensinar, nos inspirar e propor reflexões sobre aspectos importantes de nossas vidas.

Se você conhece alguma história que merece ser contada, encaminhe um email pro autor: breno@papodehomem.com.br

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a <a>Jornalismo Júnior</a>