Ele entrou no avião. Era um velho Boeing 737-400.
Hoje em dia não voam mais. Dizem que bebe muita gasolina pra pouco espaço que cobre. Dizem que é lento. Podem até mesmo dizer que é pequeno. Mas é o preferido de 11 em 10 comandantes que já o pilotaram.
Mal ele entrou, inspirou fundo e deixou seus pulmões serem invadidos por aquele cheiro característico de interior de avião, uma mistura de gasolina de avião com ar condicionado desligado. Não perguntem, é esse o cheiro mesmo.
Olhou em volta, as poltronas vazias. Lembrou-se da primeira vez que pilotara o velho 737-400 (ou 734, como é carinhosamente chamado pelos comandantes). Lembrou-se da trepidação das turbinas ao ligá-las, e o frio na barriga que sentiu então. Aquele avião inteiro sob seu comando. Todos confiavam nele. A vida de 120 pessoas em suas mão, dependendo totalmente de seu juízo.
Lentamente andou pelo corredor, por onde outrora passaram carrinhos com bebidas e comidas. Alguns anos mais tarde, passariam por ali também carrinhos com souvenirs, revistas e jornais. Se fechasse os olhos, poderia ouvir e ver passageiros passando por ali, indo ao banheiro, conversando com as famílias. Via as comissárias (”aeromoças”, como diziam na época) sorrindo sempre, entregando toalhinhas refrescantes e fones de ouvido aos passageiros.
Chegou à cabine, onde observou demoradamente o painel, com todas as luzes e mostradores tão familiares. Vivera para aquilo a vida inteira.
Sentou-se na poltrona do piloto e fechou os olhos. Agora via o tráfego. Ouvia os controladores que davam instruções às aeronaves que chegavam ou partiam. Sentia a segura presença do co-piloto e engenheiro de navegação ao seu lado. Eles também confiavam nele cegamente.
Com as mãos firmes no manche, pôde sentir o controle absoluto daquele pássaro gigante de ferro e alma. Sim, porque não importa quão avançada é a tecnologia do homem, um objeto daquele tamanho e peso nunca sairia do chão se não possuísse uma alma para voar.
Uma mão pousou no seu ombro.
– Querido, temos que ir.
Era a sua esposa. Estava sorrindo, num misto de pena e tristeza. Sabia o que se passava no interior de seu marido. Ele olhou para ela.
– Me fala, Maria… quantos anos eu tenho?
– Você faz 70 hoje…
– Setenta… sabia que dentro deste avião eu passei 30 anos desses 70?
– Sim…
– Sabe Maria… eu achava que ia morrer voando. Nunca foi o meu medo. Foi a minha vontade. Já na escola de pilotos, todos diziam: “Bom mesmo é morrer voando”… Não é justo morrer em terra.
– Querido…
– Sabe… acho que nunca ninguém pensou no “depois”. Eu não pensava. Só sabia que estava destinado a voar. E nunca tinha parado pra pensar que um dia eu ia ter que parar. Simplesmente um dia eu não ia mais poder entrar num avião destes na qualidade de comandante. Pensava que aquilo ia durar para sempre.
– Não fala assim… nós temos filhos e netos que te adoram…
– Adoram, mas não deveriam. Esta profissão me consumiu. Eu raramente parava em casa, como você se lembra. Sempre daqui pra lá. De lá pra cá. Este é o último 734 operacional no mundo, você sabia?
– Não… mas já foi sorte terem deixado a gente entrar aqui antes dos outros… daqui a pouco o piloto e os passageiros chegam e nós temos que ir nos sentar lá atrás, junto com os passageiros…
– É… ainda bem que eu conheço o pessoal neste aeroporto, não é verdade? Pude entrar aqui e ver tudo… matar saudades…
Ela sorriu. Não havia nada a dizer.
Ele se levantou e foram se sentar em suas poltronas, enquanto os passageiros entravam e ocupavam seus lugares. Os comissários de bordo iniciavam os serviços, auxiliando as pessoas a encontrarem suas poltronas, ajudando com as bagagens, tirando dúvidas.
Assim que as portas do avião se fecharam, ouviu-se a voz mecânica do comandante.
“Senhores passageiros, muito boa tarde, aqui quem vos fala é o comandante Soares. Gostaria de dar a todos as boas vindas ao vôo 1322 da nossa companhia aérea. Hoje é um vôo especial, pois é o último vôo deste Boeing 737-400 antes de ser substituído pelo novo Boeing 737-800.
Temos também conosco neste vôo de despedida o Comandante Loureiro, que voou durante 30 anos somente no Boeing 734, como nós o chamamos. Hoje o Cmdte Loureiro completa setenta anos de idade e seria um grande prazer tê-lo durante o vôo na cabine de comando.”
Dito isto, todos os passageiros olharam em volta, procurando o velhinho. Atônito, ele levantou-se e, sob uma enorme quantidade de aplausos, dirigiu-se à cabine. O comandante recebeu-o com um largo sorriso e sentou-se no lugar do co-piloto.
– Comandante Loureiro, é com enorme prazer que o recebo em minha cabine e entrego em suas mãos o último vôo do nosso querido 734. Eu fico aqui de co-piloto, caso tenha se esquecido de alguma coisa.
Com os olhos marejados e sem articular palavra, ele olhava para o comandante e para o assento do piloto, temendo acordar a qualquer momento.
– Com todo o respeito, – conseguiu finalmente dizer – em momento algum da minha vida eu me esqueci de como isto se faz.
– Não duvido, Comandante Loureiro, não duvido. Sua fama como piloto é legendária, e se não fosse ela, jamais teríamos conseguido permissão da companhia para que o senhor pilotasse. Agora seria bom sentar-se, pois estamos atrasados.
Assim que se sentou, sua expressão modificou-se e os gestos tornaram-se precisos e mecânicos. O avião tornara-se parte do seu corpo. Todos os procedimentos faziam parte de um ritual sagrado que ele interiorizara tão bem quanto o ato de andar, mastigar ou piscar os olhos.
Pelo rádio, pediu autorização para taxiar até a pista. Na resposta, outra surpresa. Ele conhecia aquela voz.
– Antunes? – perguntou tímidamente.
A resposta veio precedida por uma risada.
– Então Loureiro, você acha que é o único velho sortudo que vai ter a oportunidade de se despedir dessa sucata? Em nome de todos os controladores (aposentados e ativos) dou-lhe os parabéns pelo aniversário e desejo um ótimo vôo para o já saudoso 734. Não poderia estar em melhores mãos.
Enxugando rapidamente uma lágrima que teimava rolar pelo canto do olho, ele disse:
– É bom saber que eu não sou o único gagá neste aeroporto. Agora me dá a autorização logo antes que eu fique em último na fila.
– Não se preocupe, parece que todos os comandantes neste aeroporto sabem do evento e se recusam a decolar enquanto não virem a última decolagem do “Loureiro e seu passarinho de estimação”.
– Fazia tempo que eu não ouvia essa expressão… bom, então se temos platéia, que o show seja bonito. Taxiando ao ponto de espera da pista 09L.
É difícil descrever o que se passava em seu interior. Ele decolou ao som de palmas dos passageiros e da torre de controle, foi saudado com entusiasmo pelo pessoal do Controle e depois do Centro.
Passou pelos 20.000 pés e, quando finalmente nivelou nos 33.000 pés, morreu.
Hoje em dia, quem visitar a sua lápide, pode ler:
“Pilotou para viver e pilotou para morrer”
Embaixo, uma foto do velho comandante em frente ao seu 734.
Na foto, os dizeres “Loureiro e seu Passarinho de Estimação. Um não viveria sem o outro.”
Mytho Leal é autor convidado da Papo de Homem e nos cedeu o prazer de republicar oficialmente esse texto, que já estava em nosso fórum, mas cuja autoria desconhecíamos.
Além de ter grande talento para a escrita, Mytho atualmente se encontra perdido na Europa, onde tenta ficar mais rico e atualiza seu blog diariamente. ;D
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