Pensei nas diversas maneiras de começar esse texto.
Minha maior preocupação ao propor um tema mais sério sobre o programa de comédia mais famoso da América Latina era parecer emotivo demais e acabar confundindo o meu gosto pessoal com uma reflexão sobre alguns pontos sociológicos de Chaves (El chavo del ocho) e Chapolin Colorado, ambos personagens criados por Roberto Gómez Bolaños em 1971, também conhecido no México como Chespirito (“pequeno Shakespeare”), um apelido carinhoso dado pelo diretor de cinema mexicano Augustín Delgado por considerá-lo dono de um talento parecido com o de Shakespeare para escrever histórias.
Porém, por maior que fosse a minha preocupação, não havia como começar diferente disso:
Nasci em 1982, e desde pequeno assisto aos programas Chaves e Chapolin. Hoje, é claro, com muito menos frequência do que vinte anos atrás, mas de vez em quando ainda me surpreendo parado na frente da televisão acompanhando o desfecho de um de seus episódios. Recentemente, inclusive, enquanto esperava para ser atendido num consultório médico — médicos parece ter sempre o costume de atrasar seus horários –, descobri que o Netflix oferece em seu pacote os episódios dos famosos programas mexicanos e decidi assistir alguns enquanto o tempo passava.
Quando era mais novo, achava tudo muito engraçado e, como era natural daquela idade, não questionava tanto os produtos midiáticos que consumia, muito menos uma comédia simples e divertida, que parecia não guardar em si grandes referenciais críticos tão claros. No entanto, conforme ia crescendo e o meu poder de análise foi se ancorando em outras fontes, passei a me perguntar sobre as origens dos programas, os posicionamentos, as influências.
As respostas apareciam com facilidade e, naturalmente, passei a ver um dos meus prazeres favoritos da infância como algo não apenas engraçado, mas também sério e profundo. Assim como grande parte das obras artísticas, que nascem sem criar vínculos conceituais diretos, Chaves e Chapolin não eram pretensiosos e divulgavam suas ideias de modo leve e acessível, assim como Shakespeare e Molière.
Apesar das minhas reflexões tardias, nunca achei importante compilar os pontos de profunda crítica social que os programas levam consigo, nem mesmo na ocasião da morte de Roberto Bolaños, que emocionou a mim e a milhões de pessoas no mundo. Porém, como num agressivo insight sociológico, todos esses argumentos surgiram novamente dentro de mim depois que li um texto veiculado num grande jornal brasileiro que chamava Chaves e Chapolin de superficiais e os brasileiros que os assistiam de ignorantes.
De posse de tão grave acusação, sentei-me para almoçar com minha esposa e um amigo, e passamos a conversar sobre o assunto. E a partir dele, montei alguns tópicos que gostaria de compartilhar com vocês.
O primeiro deles se refere ao estilo de comédia adotado por Chaves (El chavo del Ocho).
Ao ambientar as histórias predominantemente dentro de uma vila, muito semelhante a um cortiço brasileiro, Roberto Bolaños buscou levar a realidade mexicana — facilmente reproduzida em qualquer cenário latino americano — para a televisão, sendo consumida por um público que se identificava com aquelas cenas.
Dessa forma, seus personagens não se distanciam das pessoas que assistem ao programa em suas casas. Pelo contrário, aproxima-as de tal maneira que elas se sentem representadas na tela da televisão.
“Tudo isso nos une, de Tijuana a Ushuaia; sempre vai ter um vizinho com uma bola que queremos e não podemos ter, sempre vamos apanhar por algo que não fizemos, às vezes seremos expulsos da nossa vila por um crime que não cometemos, e sempre terá Acapulco para irmos nos divertir mesmo sem pagar 14 meses de aluguel.”
Texto divulgado no Facebook do pessoal do Impedimento.
Essa aproximação é um dos elementos-chaves da crítica social apontada por Bolaños. É ela que vai deixar seu programa atualíssimo, mesmo tendo sido feito com um orçamento baixo e com recursos escassos de produção, e vai permitir que crianças nascidas nos anos 2000 o assistam com naturalidade.
Agora, como fazer uma crítica social sem impedir que o público em geral se afaste? Simples. Basta entender que o povo não é burro. E isso ele faz de forma genial.
Ele é genial quando apresenta personagens com características visivelmente negativas e, em vez de condená-los moralmente, humaniza-os.
Vejamos alguns casos:
Seu Madruga (Don Ramón) é um indivíduo desleixado, agressivo e machista, mas é capaz de abrigar e dividir seus poucos ganhos com o menor abandonado que vive em sua vila.
Seu Barriga (Senõr Barriga) é um típico homem de negócios que domina financeiramente os moradores, mas permite que Seu Madruga continue sem pagar o aluguel por eternos catorze meses.
Dona Florinda é uma viúva agressiva e dominadora, que vive como se ainda pertencesse a uma camada social mais rica e que se acha no direito de tratar os outros como seus servos, mas que é capaz de perceber seus erros e os acertos do Seu Madruga.
Quico é uma criança egoísta e mimada, mas empresta seus brinquedos para se divertir com seus vizinhos.
A decisão de humanizar os personagens é essencial para manter o espírito de cordialidade entre eles, seja em momentos de grande aperto, como no episódio em que uma reforma no encanamento da vila obriga os moradores a passar algumas noites na casa do Seu Barriga, ou de alegria, como durante a Festa da Boa Vizinhança.
E como o programa faz isso?
Estimulando nossas risadas para situações que poderiam acontecer com qualquer um de nós. E não são situações tão simples assim. Para quem não sabe, Chaves foi uma tradução pouco eficaz pra representar “menino pobre”, significado de Chavo. Sendo assim, ninguém da vila, tampouco os espectadores em suas casas, sabem o nome do garoto orfão que se esconde dentro de um barril, que por vezes é agredido por fazer alguma besteira, que é maltratado, que passa fome enquanto os mais ricos desperdiçam comida, que precisa trabalhar e é explorado num restaurante.
Por outro lado, vemos uma criança extremamente mimada como o Quico, que recebe os melhores brinquedos e reproduz o espírito agressivo de sua mãe, chamando de “gentalha” aqueles indivíduos mais pobres. Se você acha que um programa que apresenta esses estereótipos é superficial, sugiro pensar em como seria o Quico quando se tornasse um adulto.
Jean Paul Sartre tem uma resposta bastante existencialista em um dos contos do livro O muro, no qual retrata um criança linda e meiga se tornando um elemento sanguinário na fase adulta.
Tudo isso é apresentado por Bolaños no decorrer das histórias sem cair numa moralidade caricata. Suas conclusões são leves, mas de boa profundidade sociológica. E como ele consegue resumir essas ideias? No riso. Por meio das piadas muito bem encaixadas entendemos que nós também cometemos erros e encontramos compaixão pelos personagens.
‘Chespirito entendeu que “a comédia precisava ter profundidade, precisava ter uma crítica social (…) e se você olha os roteiros de ‘El chavo del ocho’ pode encontrar alguns elementos bem interessante que falam sobre nossa pobreza, nossas carências, da importância da família, do papel da mãe… realmente é o nosso Molière”
Álvaro Cuesta, crítico mexicano de televisão.
A mesma pessoa que nos taxou de “ignorantes” por assistir Chaves também acusou os roteiros de serem estúpidos e as piadas, preconceituosas e machistas. Por conta disso, penso ser necessário um comentário.
É provável que essa ideia formada por ela se adeque a outras comédias televisivas brasileiras bastante famosas, mas não ao Chaves. Sabem por quê? Justamente por não apontar para os personagens como modelos de conduta, mas sim para suas realidades muitas vezes degradantes.
Quem gostaria de ser desempregado, ser chamado de gentalha e viver na pindaíba? Quem gostaria de ser um professor admirado por todos, mas que não consegue avançar no relacionamento com a paixão de sua vida? Quem gostaria de ser uma “tiazona” que vive sozinha e é chamada de Bruxa do 71?
Provavelmente ninguém.
Mesmo assim, com características diferentes, podemos ser um deles, mas com conflitos bem parecidos. E é esse choque de realidade que Bolaños provocou nos espectadores desde a década de 1970, fazendo comédia sem ser caricato, criticando sem ser agressivo, sendo engraçado sem ser invasivo.
Resumindo: sendo genial sem fazer esparro.
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