A cultura do povo brasileiro escancara sua imodesta enormidade. Não passa dia sem que eu leia algum iluminado (pelos LEDs do écran) desmascarando a estupidez de algum conteúdo, geralmente em inglês, por sua falta de humor e incapacidade de nuança. Afinal, a ambiguidade é, algumas vezes, bem o que não poderia ser: o ponto.
O que Robocop, Stephen Colbert e Machado de Assis possuem em comum? Apenas um interessa para o vestibular.
(Outro leitor – não você, é claro – precisa ser lembrado que o non sequitur e a regra da sequência de três são métodos muito utilizados naquilo que alguns convencionaram chamar “piada”.)
Lá estava eu, seguindo com meus clicks desavisados, quando me deparo com a postagem, por um amigo DJ, de um artigo sobre a controvérsia do vinil. Já tratei do assunto – e minha visão é oposta. Porém, o que me chamou a atenção não foi a visão alinhadíssima do leitor com o texto em inglês – ambos contra a qualidade da amostragem digital, que, além dos CDs, é usada em astronomia e exames médicos de ressonância magnética (evidentemente os ouvidos deles tem mais PHDs que os cientistas envolvidos nesses aspectos da cultura menores que a discotecagem).
O que chamou a atenção foi como as estatísticas sobre educação no Brasil são acuradas, e podem ser já reconhecidas facilmente pela qualidade da interpretação do texto. Eu, pessoalmente, sempre gostei de Machado de Assis, embora tenha ficado um pouco chateado de ser obrigado a ler em aula – numa idade em que preferia os russos e Nietzsche. Mas entendo a necessidade, uma vez que um texto com qualquer nível de subtexto dá um balão na “funcionalidade”.
(Sobre o Machado light: não sei se o jogo fino da sátira e da ironia do subtexto sobrevivem nas versões simplificadas. Se já quando é tradução fica difícil…)
Irrespective, são classificados três tipos de sátira: horaciana, juvenalia e menipeia. Bakhtin, que é um nome sempre legal de citar para arrepiar os direitecas, considera a sátira menipeia uma das origens do romance “polifônico”, que é uma narrativa que possui uma diversidade de pontos de vista e vozes. Machado de Assis e Dostoievsky são exemplos de sátira menipeia. Não se trata de um ataque a uma pessoa ou grupo de pessoas, mas a ideias e costumes. Northrop Frye lista algumas as atitudes mentais atacadas e ridicularizadas pelas sátiras menipeias: “profissionais incompetentes, pedantes, preconceituosos, ranzinzas, novos-ricos, virtuoses, entusiastas ou predatórios” – e essas coisas são tratadas como doenças do intelecto.
Já por essas características, se a verve de Machadão tivesse sobrevivido no discurso contemporâneo, seria um bocado bom para o Barzil, não é mesmo?
Seguindo a aula, algo como Laranja Mecânica seria uma sátira juvenalia, porque despreza mais o objeto, e é mais corrosiva – não precisa ser engraçada. E This is Spinal Tap e Dr. Fantástico (dois filmes que estão no meu DNA) são sátiras horacianas, porque se ocupam de vícios sociais de forma mais anárquica e zombeteira, pelo ridículo.
Fascinante, não é? Você aprendeu isso na escola? Seria legal, não?
O que lemos na esfera intelectual (e facebookiana também) brasileira, hoje, são sermões. Como, por exemplo, quando já nos primeiros parágrafos cansei de tentar fazê-la e segui para coisas como “a educação é horrível, não se aprende nem sobre sátira na escola!”.
A ironia fica por conta do acaso: um blog de sucesso anuncia que não publica textos de autoajuda, mas é quase só isso que faz. Óbvio: a gente é chique, não se mete com prescrição óbvia. O que os outros fazem é autoajuda, nós, embora seja essencialmente igual, é “melhor”. Ora, por quê? Porque somos nós! Melhor não chamar de autoajuda, isso é o que os jecas fazem… mas, igual, trata-se de cultura da epifania e autodesenvolvimento, transformação pessoal, e o escambau, não é mesmo? Que são coisas também totalmente desprovidas de sofisticação, literatura e os elementos mais profundos do texto. É só gente querendo tomar o lugar de Jesus no sermão da montanha, pode crer.
O brasileiro chafurda, comumente, em apenas dois âmbitos de discurso: a pregação e a mesquinhez sardônica – podem examinar livremente os textos publicados por periódicos, blogs, e os comentários longos de Facebook. O medo de não ser entendido produz uma multidão que não exige absolutamente nada do texto.
O brasileiro médio possivelmente, são as evidências estatísticas, não consegue lidar com um texto mais complexo do que o de uma revista trivial – e olhe lá. É só titulo sensacionalista (no ponto certo, senão pega mal), chamadinha provocadora, e então o autor mostra que é mais esperto do que o leitor, mas que o leitor não tá tão mal assim, e em seguida os dois batem palma um para o outro numa congratulação mútua. Pacto de mediocridade de “veja só o defeito/qualidade indesejada que eu tô me esforçando para superar em mim… você também pode!”
Ou, no máximo, aparece um mal-humorado que não gostou das imagens e do tamanho da fonte, ou não foi com as caras das figurinhas usadas para ilustrar, e se dispõe, tão generosamente, a digitar, letra por letra, nos comentários: “não gostei”. O comentário “não gostei” é o cúmulo do “achar-se na posição de”: eu existo, você existe, eu sou contra você. Argumentos suficientes, comunicação evidentemente completa. Poderia sucumbir ao esforço monumental de apertar mais umas teclas e escrever: “só uma critica construtiva: não gostei”. Daí pelo menos ia ter uma ironiazinha singela, e seria mais irritante.
Mas deixemos de alimentar e educar os trolls.
Ficção, e textos não ficcionais com mais valor literário, tais como sátiras (que podem ser as duas coisas) tem todo valor educacional, moral, transformador que qualquer texto direto e pobrinho pode ter – e certamente muito mais. Afinal de contas, as modalidades do discurso se desenvolveram pelos mesmos processos darwinistas, visando refinar emoções e desenvolver empatia. E, claro, há espaço para tudo. Resta saber com que você quer se vincular – mas eu não vou cair na armadilha de “se você se esforçar para ser refinado como eu, vai ser melhor para nós dois” – porque se eu preciso te convencer (ou lembrar!), Creusa, já começou mal.
E vai mais além, o texto raso, direto, motivacional-epifânico, “vou dar as reais”, não consegue lidar com as doenças do intelecto, e os problemas do discurso sem ética. Para isso é necessário armamento pesado, é preciso retórica – no bom sentido, isto é, não “mera retórica”, como o clichê da crítica histórica acabou revirando o sentido das coisas. É necessário brilhantismo humorístico, ironia, paródia, sátira.
O fato é que não temos, e possivelmente por longos e árduos anos em que a educação pode ou não melhorar, não teremos, gente como Jon Stewart e Stephen Colbert no Brasil. Aqui, política é coisa séria – tá sempre acabando o mundo, e na mesma medida em que estão todos unidos para fechar os financiamentos de campanha e distribuir o poder entre os amigos – na mídia tacam os piores golpes, que não são nem baixos, são nada mais que desinformação. E sim, não é defesa da situação – que sempre se prefere ficar criticando –, ela também faz isso.
O discurso político por aqui não admite os modos indiretos, que exigem subtexto. Rir do ridículo da opinião política do outro é uma sutileza absolutamente desconhecida: são todos bêbados, burros, incompetentes, ladrões e golpistas – trata-se de uma gleba de trogloditas desqualificados se digladiando, sem nem o alento da aliteraçãozinha para fingir que é literatura! Quando muito, a mais baixa forma de textualidade artê: o trocadilho. Mas, modo geral, os embates ocorrem entre dois babões sérios que observam a realidade por ângulos diversos e, no fim das contas, não tem como se comunicar.
Isso vai da conversa (que todo mundo já aprendeu a evitar), passando pelas redes sociais, até a sala de aula na universidade e a maioria das produções intelectuais, sejam efêmeras e despretensiosas, como nos periódicos, sejam mais volumosas e metidas, como nas dissertações (quando estas tem alguma conexão com a “realidade” no sentido sociológico, e não tratam de ciência básica ou pós-modernismo tosco).
Convido essa gente a examinar bem o que esses dois heróis estadunidenses fizeram contra Bush e sua equipe, pelos oito terríveis anos que basicamente colocaram o mundo no ritmo apocalíptico final que se encontra hoje: foi lindo de se ver. A pena contra o drone, a videocassetada de Bush versus o waterboarding.
Tudo bem que Obama ficou muito a desejar, principalmente se não somos americanos, e os EUA mudaram pouco suas políticas imperialistas, e que esses aí sejam “liberais” (o que em português se traduz como “de esquerda” – liberal nos EUA acaba sendo quem quer um pouco mais de governo, impostos maiores para os ricos, regulações, etc. O oposto do que se entende por liberal aqui. Isso se deu porque “liberal” virou um xingamento da direita americana para quem defende coisas como casamento gay, ou direitos civis como o fim da segregação, nos anos 1960.)
Inacreditavelmente, vários brasileiros ficaram indignados com o humor de Colbert, quando ele falou do Brasil.
Eu mesmo tive que explicar para mais de um que Colbert parodia, na mais fina sátira horaciana, com ricos momentos de juvenalia, a direita conservadora – aquela direita estadunidense armada e desprezadora de latinos jardineiros e catadores de laranja como Jabor, Olavo de Carvalho, Diego Mainardi, Denis Rosenfield, Lobão, Diego Casagrande, Bóris Casoy, Luis Felipe Pondé ou Rodrigo Constantino. Fortona feito o Schwartzenegger (ao menos na sua visão de si mesma), cheia de culhões armamentistas, mas absolutamente ridícula – e profundamente imoral, vestida de pele de cordeiro. Assim era o personagem Colbert, a paródia da escória do jornalismo político estadunidense.
Mas o brasileiro médio olha e vê a literalidade: ele reconhece o americano insuportável que ele está retratando, mas não o humor que ele está fazendo com isso.
Enquanto isso, aqui no Brasil, um colunista gaúcho frequentemente fala barbaridades racistas e outros absurdos, e quando a coisa fica difícil, ele faz o mais esquisito apelo de um jornalista: “era tudo sátira, gente!”. No Brasil, sátira tanto não existe, que já só existe como desculpa para a demência senil do Paulo Sant’ana. Outro colunista, Edival Lourenço, chora não existir público para a sátira no Brasil.
Está certo que certas culturas não se adaptam tanto aos valores clássicos da cultura greco-romana. Também está certo que a ironia ficou nos anos 90. Porém, o humor crítico que educa por meio de paulatinamente desenvolvermos a sutileza necessária para que se ria – e que ri de quem está por fora dos assuntos que interessam ao bem público – esse parece ser um valor importante, e que faz falta.
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