A primeira foto que vi de Robert Mapplethorpe, muitos anos atrás, foi esta:
Lembro ter ficado intrigada pelo que ela me provocava. Porque enquanto era simples em sua composição, me trazia sensações complexas. Algo velado, algo que não se vê, não se pode, não se quer, e ao mesmo tempo a boca numa pose tão sensual, esperando, vivendo. Pesquisei e percebi que para mim o mais marcante nas imagens de Mapplethorpe era a carga sexual, uma linha presente em seu trabalho, costurando a temática ora com mais ou menos força.
O cenário é Nova Iorque, entre 1975 e 1986, quando se desenvolvia o pop art nos Estados Unidos, o movimento artístico que buscava criticar o próprio conceito de arte e o culto da imagem. O fotógrafo Robert Mapplethope (4 de novembro de 1946 – 9 de março de 1989) constrói seu trabalho baseado no mundo nova-iorquino que vivia, registrando desde modelos e artistas à crueza de relações sadomasoquistas.
O verão de 1982 foi marcado pelo pânico no universo gay causado pela chegada da AIDS e artistas como Mapplethorpe, que registravam especialmente a temática sadomasoquista, passaram a ser censurados, até mesmo em seus contextos. Qualquer julgamento que não fosse de ordem estética, mas moral ou politicamente correto, enfurecia o fotógrafo, mas foi também a temática que provocava escândalo que deu visibilidade aos seus registros.
Apesar de toda a polêmica, Mapplethorpe conseguiu que seu trabalho superasse a pornografia e a escatologia e fosse visto como arte. Ao mesmo tempo, ao saber que ele fotografava penetração anal por punho, o público e a crítica compreendia que fotos de lírios também poderiam conter carga sexual.
Foi sobre estes valores simbólicos, afinal, que foi construído o conceito do artista. Aqui vou preferir me abster dos couros e do fist-fucking e ficar com o registro do feminino, do masculino e da sexualidade, talvez a parte mais soft da obra dele.
Androginia e sexualidade
Além da própria figura que misturava masculino e feminino, dos autorretratos vestido como os dois opostos, a androginia está presente no trabalho de Mapplethorpe também com os modelos. Uma vez que a fotografia era sua maneira de expressar, ele preferia registrar o que se via implicado em primeira pessoa, talvez numa busca do seu próprio lado feminino e masculino.
Apesar de declaradamente gay, o fotógrafo se relacionava também com mulheres. Por muito tempo a roqueira Patti Smith foi a outra metade do Robert. Seu corpo também andrógino o fascinava, talvez porque era como uma versão feminina do fotógrafo. A ligação com sua primeira musa andrógina sugere uma identificação forte, quase como um espelho.
Já com Lisa Lyon, fisioculturista e modelo norteamericana, a androginia não se dava por uma falta de definição entre masculino e feminino (como com Patti), mas pela forte presença dos dois opostos em uma só pessoa. Os registros de Lisa são cheios de signos que evocam elementos representativos de masculinidade e feminilidade, sua sensualidade reside na tensão de forças oposta num mesmo corpo.
Robert Mapplethorpe reivindica a sexualidade em suas imagens como maneira de afastar os fantasmas da repressão, encarnando fotograficamente gestos reais e passionais, capazes de efetuar transformações. A sexualização de suas imagens é vista, por alguns autores, como uma tentativa de acabar com a assexualidade e assepsia do “signo visual”.
Assim, sua flores também podem conter conotação sexual, atestando a presença do eros em grande parte do seu trabalho. Nas palavras do próprio fotógrafo: “Trabalho na tradição da arte… para mim o sexo é um dos maiores gestos artísticos”.
Robert Mapplethorpe morreu em decorrência da AIDS em 9 de março de 1989, aos 42 anos.
Um ps: só agora, muitos anos depois de conhecer, ler, pesquisar e escrever sobre Mapplethorpe me dou conta de que nasci no mesmo dia que ele, 40 anos depois. Pode ser bobo, mas me faz sentir, de alguma maneira, mais perto dele.
Boa semana a todos.
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