“Algumas pessoas ouvem a si mesmos ao invés de fazer o que os outros mandam. Não surgem com muita frequência, mas quando surgem, nos relembram que quando você traça um caminho, independentemente do que os críticos digam de você, nada é impossível”.

Esse é o trecho de um comercial esportivo referindo-se a Mohammed Ali e outros grandes atletas que fizeram a diferença.

Lance Armstrong venceu o Tour de France sete vezes consecutivas após ter sido diagnosticado com câncer de testículo e ter tido um deles amputado.

Nelson Mandela levou a medíocre e desacreditada seleção de Rugby sul-africana ao título mundial em 1995.

falei aqui sobre diversos casos de heróis que enfrentaram as probabilidades para fazer o que mais ninguém tentou e obtiveram êxito:

Link YouTube | Sonho impossível da Honda

O carro de U$500 entra no Campeonato Mundial de Rally

Bill Caswell é um ilustre desconhecido digno de participar desse seleto grupo formado por eternos inconformados que recusam-se a admitir em seu dicionário a palavra impossível. Bill realizou meu sonho pessoal e foi além.

Há um bom tempo pretendo montar um carro de competição simples, com os recursos disponíveis e participar de provas como 12 Horas de Tarumã e, ao menos uma única vez, as 1000 milhas de Interlagos. Bill decidiu comprar um carro de 500 dólares, prepará-lo e correr uma etapa do campeonato mundial de rally, o WRC.

Em 2004, vi nas 12 horas de Tarumã um excêntrico competidor que não possuía equipe. (sigam o link pra relembrar)

Ele guiava um Fusca com motor AP 2000 de Santana preparado por ele mesmo com um turbocompressor soprando baixa pressão. Durante os pitstops aquele herói pulava do carro pela janela, buscava a mangueira de combustível vinda de um tonel suspenso no box e abastecia seu próprio carro. O Fusca foi o último a cruzar a linha de chegada. Entretanto, as 12 Horas de Tarumã é famosa pela baixa quantidade de carros que completam a prova sem quebrar. Funcionando, o Fusca foi o 13º colocado competindo contra equipes como Medley com pilotos como Xande Negrão e Ingo Hoffman.

O poderoso Fusca na largada das 12 horas de Tarumã.

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O amador vs A elite

O feito de Bill é mais impressionante ainda.

O WRC não é uma prova regional de Rally.

É um ambiente extremamente profissional onde os melhores pilotos do mundo aceleram bólidos de 400 mil dólares ou mais em estreitas estradas de terra com velocidades que facilmente superam os 170 quilômetros por hora. O WRC é o sucessor do antigo Grupo B, a competição mais perigosa do mundo a motor que se tem notícia. Antigamente, os carros de Rally desenvolviam quase 1000 cavalos de potência, eram bombas relógio famosas por matarem seus pilotos. O carro de Bill definitivamente não é um desses.

Ao volante de uma BMW 318i 1991 com um motor de M3 E90, Bill dividiu a pista com nomes como Kimi Raikkonen, Ken Block e Sebástian Löeb. Bill não tinha equipe, não tinha patrocínio, não tinha nada. Tampouco era um expert em corridas ou em mecânica. Isso não é uma piada,um “amador” decidiu enfrentar a elitedo automobilismo mundial com o que tinha no pátio de casa. Buscando informações por conta própria, usando uma meia dúzia de ferramentas e um maçarico, Bill preparou seu próprio carro.

Estudou como fazer seu próprio santo-antônio (Rollcage) de acordo com as especificações da FIA pois queria poupar o dinheiro que seria usado para adquirir os pneus. O resultado é uma BMW velha, com cara de velha, mecânica velha, competindo contra os melhores carros de Rally do mundo e vencendo eles.

Competição justa: uma BMW caquética contra campeões de F1 em carros milionários.

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A 318i com um 6 cilindros da M3 E90 embaixo da capô chegou ao local de prova completamente suja sem nem sequer ter sido lavada (“Eu teria lavado, mas tinha várias coisas para consertar antes da prova”).

O co-piloto era Ben Slocum, a quem irei me referir como “O Pirata”. Me dou a liberdade de chamá-lo assim pois Ben, que nunca havia treinado com Bill ou sequer o conhecido pessoalmente até o momento da prova, é um experiente navegador de 25 anos que perdeu um olho após um acidente durante uma competição há alguns anos atrás.

Bill e seu “destemido navegador do tapa olho” são insanos.

Enfrentaram diversas dificuldades, quebraram, consertaram, nunca desistiram e derrotaram algumas das principais equipes e pilotos de Rally do planeta.

Bill Caswell e seu co-piloto Ben Scolum, que não tem dos olhos. Mesmo. O cara não tem um olho. | Link

Foi confundindo esquerdas com direitas, o que podia ter lhe tirado da prova. Felizmente O Pirata, posteriormente revela ter decifrado 98% daquele espanhol codificado da etapa mexicana, lhes permitindo completar aquele estágio com um tempo muito bom.

Seguem trechos escritos pelo próprio Bill:

“Ah sim: a polícia fechou a estrada para que pudéssemos ir de uma cidade a outra em alta velocidade. Bem, preciso dizer que emparelhar pneus de rally com outros carros de rally enquanto a polícia mexicana tenta alcançar sua velocidade é impagável.
Isso para não dizer que as ruas estão tomadas por pessoas ao longo de mais de 20 milhas. Era demais.
Chegamos lá tarde demais e não houve tempo para fazer reconhecimento do percurso. Conseguimos algumas notas do Campeão Peruano de Rally para o próximo estágio. O cara era legal mas as notas estavam em espanhol ou algo assim.
Então E’s são direitas e D’s são esquerdas?”

Agora mostrando-se um Macgyver ao realizar um dos muitos engenbrations necessários durante a competição:

“A bomba de combustível parou com 3 estágios para o fim da prova.
Eu a tirei fora, bati nela, peguei um canivete emprestado de um policial, cortei algumas braçadeiras que achei no painel e as usei para reverter o fluxo e voltei a bater na bomba até que voltasse a funcionar.”

Bill, também mostrando ter sorte, nervos de aço e perícia de James Bond:

“Havíamos terminados o primeiro estágio do dia. Trinta quilômetros de loucura. Eu vim por esse trecho de 115-130 Km/h com milhares de pessoas no acostamento. Fizemos uma curva e lá havia uma ponte que de alguma forma não estava nas anotações. Era um pedaço de concreto bastante estreito e nossa trajetória apontava para fora da pista. Slocum fala no microfone “era isso, acabou pra a gente“, para de ler as notas e assume posição de impacto.
O rio embaixo possui barrancos do tamanho de fuscas. Areia e gravetos nos cantos quase como se os espectadores tivesse colocado ali. Não conseguia apontar para dentro da curva, escorregando de lado muito aberto, a saída da curva prevista é a entrada da ponte. Eu seguro o carro em uns 70 Km/h.
Metade do carro passa reto para fora da ponte. Estamos olhando para a luz do dia e eu estou com pé embaixo esperando que o pneu esquerdo e o diferencial consigam tracionar o carro para cima da ponte. Nós fomos tão para fora da ponte que entortamos uns 5cm o braço de dentro da bandeja da suspensão.
Quase todo o lado direito do carro ficou suspenso no ar.”

Bill e seu amigo Pirata vivendo um pouco do que todo paulistano conhece: lombadas e delinquentes:

“No terceiro estágio não vimos um aviso de elevação. As nossas anotações estavam em português ou algo parecido. Quando vimos saltamos à uns 130 Km/h e o carro saiu voando.
A queda foi semelhante a atravessar uma parede de tijolos e partiu um coxim do motor ao meio. Mas o salto foi muito louco.
Depois disso fizemos uma parada rápida mas logo pegamos a estrada denovo. Algumas crianças jogaram gravetos na pista e eu furei meu tanque perdendo metade do combustível para o próximo estágio. A melhor parte é que oficiais de prova nos mostraram e me deixaram consertar. Eu consertei o tanque somente com o que tinha no porta-malas.
Um pouco de fita tape e seguimos adiante.”

Entrou sem prestígio, saiu como improvável herói. | Link

A BMW caquética, contra tudo e contra todos, chega lá. Em terceiro lugar.

Em meio a todos aqueles bólidos preparados com tração integral, a 318 antiguinha era aúnica com tração traseira e chegou lá. Ao longo da prova Bill e Jack Sparrow conquistaram a admiração do público e participantes do evento. São inúmeros os relatos de multidões que gritavam o nome de Bill e Slocum durante sua saga inacreditável. Mulheres ficavam histéricas por ondem passavam. O Pirata que não é bobo, faturou ao menos uma delas.

Bill completou o rally em terceiro lugar.

Para lerem o relato completo deste feito inigualável desses dois admiráveis malucos, vale a pena conferir a cobertura completa no Jalopnik, em inglês:

How A $500 Craigslist Car Beat $400K Rally Racers
I Co-Drove The $500 Craigslist Rally Car

A saga de Bill e Slocum é mais um exemplo de que nada, absolutamente nada, é impossível.

Está esperando o quê para tirar do papel aquela sua velha ideia maluca?

Rodrigo Almeida

Engenheiro, apaixonado pela vida e por qualquer coisa com um motor potente, nostálgico entusiasta de muitas daquelas boas coisas que já não mais se fazem como antigamente.

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