1ª Parte: revolta em Bananovênia

Há um país chamado Bananovênia, nos balcãs. Em momento recente da sua história, a amesquinhada calmaria dessa nação foi sacudida por eventos perturbadores e até agora inexplicáveis.

Certo dia, os alcaides das principais províncias de Bananovênia decidiram aumentar em alguns centavos o preço do transporte das carruagens. Isso levou alguns estudantes a protestarem, mas o que se seguiu aos primeiros protestos era algo que nem esses jovens podiam imaginar.

De repente, milhares de pessoas foram às ruas, e ninguém tinha muita certeza do motivo. Em São Serápio, principal metrópole da Bananovênia, 22 mil pessoas ocuparam a grande Avenida Serapista e foram recebidos pela Policia Militar com gás lacrimogênio e balas de borracha. Pelo menos 150 manifestantes foram presos.

Após esse evento, o país inteiro incendiou-se com manifestações. Em Bananovília, capital da orgulhosa nação,  5 mil pessoas não puderam ser contidas por policiais militares e tomaram posse das pirâmides (uma invertida) que abrigavam a Câmara dos Deputados e do Senado Federal. No Rio de Abril, a cidade mais famosa e bela da Bananovênia, 100 mil pessoas foram as ruas, 20 policiais foram feridos e 2 pessoas foram baleadas.

Bananovênia em dia de fúria
Bananovênia em dia de fúria

As manifestações chegaram a receber 83% de aprovação da população. E isso é no mínimo curioso, pois a população aprovou algo que não tinha objetivos claros. Ninguém sabia com certeza o que esses milhares de manifestantes queriam – e certamente os protestos já não tinham mais nada a ver com o preço do transporte nas carruagens.

Alguns manifestantes desejavam a derrocada do sistema capitalista, outros bradavam o retorno da ditatura militar anticomunista. Alguns manifestantes, mais revoltados, acreditavam que a revolução começaria quando se quebrassem vidraças de lojas que vendiam brioches, pois os brioches eram principais símbolos da opressão.

Procuraram-se líderes, mas o movimento parecia ser, em todos os sentidos, acéfalo.

De qualquer modo, pelo tamanho dos protestos, o leitor deve imaginar que após esses eventos ocorreu uma grande transformação na Bananovênia. Afinal, toda aquela comoção social tinha que resultar em alguma mudança significativa, para o bem ou para o mal.

Na verdade, não aconteceu coisa alguma. Nem mesmo o preço do transporte por carruagens deixou de ser aumentado depois. Todas aquelas manifestações, milhares de punhos erguidos para o alto, depredações, gás lacrimogênio, balas de borracha, invasões de espaços públicos, palavras de ordem, tudo aquilo abalou a sociedade bananovenense para absolutamente nada.

Pior ainda. Um ano depois desses eventos curiosos, o povo da Bananovênia teve a oportunidade de ir às urnas, e foram eleitos os mesmos congressistas que já estavam no Poder Legislativo durante os protestos, e os bananovenenses colocaram no segundo turno das eleições presidenciais representantes dos mesmos grupos que estavam no poder do país há mais de vinte anos — até porque os outros candidatos que defendiam uma “nova política” não pareciam defender algo de realmente diferente.

Até hoje nenhum historiador ou sociólogo conseguiu emplacar uma teoria sobre o que realmente aconteceu. O máximo que se concluiu é que todos aqueles protestos foram, na verdade, uma grande pataquada.

2ª Parte: um pássaro curioso

A paródia da Bananovênia permite que tenhamos uma percepção distanciada das manifestações de 2013 no Brasil. Tratou-se de um fenômeno tão grandioso quanto inexplicável se considerado isoladamente. Esse evento surgiu inesperadamente, fez grande barulho e desapareceu também num passe de mágica, sem produzir realmente qualquer alteração na sociedade.

Para compreender o que aconteceu, precisamos dar um passo atrás e olhar o cenário de uma perspectiva mais ampla.

Em junho de 2013, escrevi um artigo em que propus que as manifestações consistiam em um Cisne Negro, conceito criado por Nassim Nicholas Taleb: foram um evento imprevisível, cujas causas estavam situadas fora de nossa moldura de compreensibilidade, com potencial para impactar toda a sociedade e que nenhuma teoria posterior conseguiu explicar, pois ninguém saiu dos paradigmas tradicionais ao analisá-lo.

Fui então um pouco mais longe e sugeri que esse evento poderia estar relacionado com outras manifestações que haviam ocorrido ao redor do planeta antes, em Nova Iorque, Istambul, Teerã, Londres e Madrid. Todas, afinal, possuíam as seguintes características: eram espontâneas, populares, organizadas pelas redes sociais e consistiam na ocupação de espaços públicos com o enfrentamento de resistência policial.

Propus que podíamos explicar a conexão entre esses eventos utilizando como metáfora a teoria dos campos mórficos de Rupert Sheldrake. As manifestações ao redor do mundo seriam resultado de um padrão de organização que moldaria fenômenos aparentemente isolados e desconexos, como uma espécie de energia psíquica coletiva que estivesse migrando de sociedade em sociedade, deixando sua marca e partindo logo em seguida para afetar outra comunidade em outro ponto do planeta.

E, de fato, após as manifestações no Brasil terminarem, ocorreram outros protestos ao redor do mundo com aquelas mesmas características, tornando ainda mais consistente a proposta de que algo está trespassando diversas sociedades e expressando por meio delas um padrão que ainda não sabemos ser positivo ou negativo — talvez os dois.

Os protestos pelo Brasil terminaram em julho de 2013, e em novembro desse mesmo ano começaram as manifestações na Ucrânia, diante da suspensão de um acordo com a União Europeia e do estreitamento de relações entre o governo do presidente Viktor Yanukovich e a Rússia. Os protestos prosseguiram ao longo de 2014 e, como conclusão, resultaram na deposição do presidente, em sangrentos conflitos separatistas e na ameaça de intervenção militar russa.

Na Ucrânia, o Cisne Negro deixou mais estragos
Na Ucrânia, o Cisne Negro deixou mais estragos

Concluída a fase de protestos na Ucrânia, algo começou a acontecer em outro ponto do mundo. No segundo semestre de 2014, em Hong Kong, diante da tentativa do governo chinês de limitar a postulação de candidatos para as eleições de 2015, o movimento Occupy Central passou a organizar manifestações de jovens através de redes sociais com a finalidade de ocuparem pacificamente espaços públicos, ainda que enfrentando a resistência de forças policiais e seu famigerado gás lacrimogênio. Estamos, neste momento, acompanhando o desenrolar dessas manifestações, que tem resultados imprevisíveis.

Em resumo, o Cisne Negro ainda está passeando.

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Porém, após um bom tempo de análise e distanciamento dos fatos, já é possível identificar duas características nesse pássaro. A primeira que ele não é negro, mas especular. A segunda é que as águas em que ele se desloca podem estar confirmando o surgimento de algo jamais visto na história humana, mas já previsto por alguns.

3ª Parte: o Cisne Especular

As manifestações no Brasil em 2013 começaram com setores progressistas da sociedade interessados em questões de mobilidade urbana e transporte público, mas num segundo momento foram para as ruas posicionamentos políticos dos mais variados, dos quais se podem distinguir claramente dois grupos.

O primeiro grupo é composto por simpatizantes de uma esquerda perdida no tempo e que ainda planeja a derrocada do “mercado” e o “fim do capitalismo”. O segundo grupo é composto por simpatizantes de uma direita socialmente conservadora que flerta com um futuro golpe militar.

A impressão foi a de que o país não mudou nada nos últimos cinquenta anos. Os mesmos velhos discursos eram ditos por novos personagens. É como se os espíritos dos jovens participantes de grupos subversivos de esquerda na década de 60/70 do século passado e dos militares defensores da ditadura e contra o comunismo no mesmo período tivessem mediunicamente entrado em contato com os manifestantes dos protestos de 2013 e orientado seu comportamento e suas falas.

O caminho do cisne negro até agora
O caminho do cisne negro até agora

No Oriente Médio, as manifestações que depuseram o presidente Mubarak produziram um caos sem precedentes no país. Na Ucrânia, os protestos resultaram num conflito separatista que serve apenas aos interesses da Rússia. Em Honk Kong, a causa é digníssima mas as consequências são incertas.

É como se esse “cisne” (padrão de organização que ressoa de modo não-causal) tivesse a capacidade de ressaltar e intensificar as características e defeitos da sociedade em que chega. Ele não traz algo de novo, apenas revela divisões ocultas, insatisfações represadas e esperanças adormecidas.

O cisne, claramente, não é negro. Ele é como um espelho, que reflete e amplia a imagem da sociedade em que chega. Suas penas não são escuras, sequer têm cor própria – elas têm a cor da sociedade que refletem. É um cisne especular.

Se a sociedade está amadurecida, sua chegada é bem-vinda e pode trazer resultados transformadores. Porém, se a nação não está preparada, não amadureceu suficientemente, o fenômeno apenas vai intensificar os problemas já existentes – e nesse caso devemos estar agradecidos se não houver maiores consequências.

4ª Parte: as águas da consciência

Mas esse fenômeno, que começou com o Occupy Wall Street, passou pelo Brasil e agora aporta em Hong Kong como Occupy Central, navega em águas jamais singradas. Todos os protestos organizados ao redor do mundo tiveram em comum o fato de que foram organizados por meio das redes sociais, utilizando a internet como forma de mobilizar os participantes. Todas as manifestações e abusos das autoridades na tentativa de conter os manifestantes eram acompanhadas pelo mundo inteiro em tempo real.

Décadas antes de a internet surgir, o jesuíta e filósofo Pierre de Chardin e o geoquímico russo Vladimir Vernadsky previram o futuro surgimento de algo que denominaram noosfera (do grego nous, inteligência, e sphaira, esfera). Após o surgimento da geosfera (crostra terrestre) e da biosfera (organismos que povoam a Terra), a tecnologia faria surgir ao redor do planeta uma consciência coletiva formada pela interação das mentes humanas graças a meios de comunicação cada vez mais céleres.

Seriam essas manifestações que se alastram pelo mundo os primeiros movimentos de uma consciência coletiva que está nascendo? Essa energia que todos sentimos durante as manifestações e que se manifesta pelas redes sociais é resultado de nossa percepção instintiva de que algo grandioso está acontecendo? Saímos nas ruas não exatamente para protestar pelo preço da passagem nem “contra tudo isso que está aí”, mas sim porque ficamos ansiosos e inquietos ao intuirmos que estamos testemunhando e sendo parte do nascimento de algo novo e capaz de transformar toda a humanidade?

Nesse caso, temos com que nos preocupar.

chardin

E isso porque a experiência do Cisne Negro demonstrou que ele tem como característica a capacidade de ampliar os defeitos e qualidades de uma sociedade. Nossos piores preconceitos ou nossas melhores aspirações podem se fortalecer, e o resultado pode ser desastroso ou auspicioso. Não há razão para acreditar que a emergência de uma noosfera seja algo necessariamente positivo, pois tudo depende dos primeiros momentos de sua formação.

Se essa consciência coletiva está nascendo, ela é como a consciência de uma criança, e tudo o que inicialmente for processado deixará marcas e definirá o modo como ela se desenvolverá. E precisamos ter isso em mente, a depender dos próximos rumos do Cisne Negro e dos próximos movimentos dessa onda de protestos ao redor do planeta.

É possível que a onda ganhe força e volte a abalar novamente o Brasil e outros países nos próximos anos. E temos de estar preparados caso isso ocorra. É possível, porém, que essa onda perca impulso e acabe em algum momento após chegar em um novo país (no México?). Porém, mesmo nesse último caso, se for correta a teoria de que se trata dos primeiros movimentos (erráticos, confusos) de uma consciência coletiva ainda criança, o provável é que dentro de alguns anos uma nova onda surja, com força ainda maior.

Enquanto isso, em Bananovênia, tudo parece como antes.

Muitos dormem, sem suspeitar da possível aproximação de um novo tsunami, causado por um aumento da passagem ou outra questão aparentemente inofensiva. A divisão do país e os conflitos sociais se aprofundam, e ninguém se preocupa com a possibilidade de que, da próxima vez, nem mesmo a bovina passividade e conformismo de sua população seja capaz de aguentar o tranco do nascimento de uma grande consciência coletiva.

Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."