Eu poderia me resumir a falar o quanto o filme é fraco, o roteiro é pobre e as relações são inconsistentes. Ou que o Christian Grey é muito mais um escroto que um sádico. Eu realmente acho tudo isso, e a cena final com a Kim Bassinger de vilã, pelo amor de Deus, compete em pé de igualdade com a qualidade dramática daquele meme de novela mexicana que a mãe louca derruba a menina na cadeira de rodas. Mesmo com todos os críticos de cinema do mundo descendo o cacete em E. L. James, a franquia continua um sucesso entre milhões de mulheres que defendem a beleza do relacionamento entre Anastasia e o Sr. Grey.

Qual é o lance do Filme?

Para os que não gastaram e não gastarão seu tempo vendo a franquia, vamos ao resumo: Anastásia Steele é uma jovem meio sem graça, começando a vida profissional, que por acaso conhece um bilionário de 26 anos, dono de uma rede internacional de telemarketing (ou seja, o diabo em pessoa) e outros negócitos más. O cara se encanta por ela e começa a perseguí-la, mandar presentes e fazer propostas indecentes. Ela se apaixona pelo rapaz obsessivo que lhe apresenta um contrato detalhadíssimo de regras que ela deve seguir, além de castigos que serão aplicados caso alguma seja descumprida. Claro que no meio dessas regras e desse rolo há algumas cenas de sexo pseudo sádico que se resumem em “promete mais do que faz”.

Mesmo tendo uma dezenas de empresas para presidir, não falta tempo para que ele controle o paradeiro e até a alimentação dela. A moça parece se cansar e dá um pé nele. Então, no segundo filme, o Sr. Grey corre atrás dela com seus bilhões de dólares e influências, ela o aceita de volta com a condição de suspender todas as regras, o contrato, e tenta ter uma relação normal.

Como Pode?

Num primeiro momento, parece mesmo que quem valoriza essa história são, na verdade, mulheres que só querem um cara rico e gato, e estão prontas a se submeter a qualquer coisa e a fazer papel de trouxa para isso. Eu já pensei e já falei isso. Várias vezes. Inclusive na frente desses fãs. Usando de todo meu desdém.

Mas milhares de pessoas – principalmente mulheres – continuam amando e eu precisava entender o porquê. Será mesmo que esse deslumbre vem só do fato dele ser rico e sarado e que essas pessoas realmente acham que aquilo é um modelo excitante de vida sexual?

Pra entender como é possível gostar da franquia é preciso seguir esses três passos: 1-) conversar com alguém (ou vários alguéns) que goste, 2-) assistir tentando se abrir à história e não entrar no cinema com pedras na mão 3-) entender que o público fiel da franquia são mulheres que tiveram uma criação mais tradicional, independente da idade (quase metade do público são mulheres que já tem filhos e 15% dessas já passaram dos 55 anos).

Acho que devemos nos poupar de discutir coisas como “essas feministas defendem direitos iguais mas gostam do rico escroto que bate” e entender que as fãs da franquia não são exatamente ativistas, além de muitas outras questões vão se explicar ao longo do texto.

Não que seja de grande importância, mas é preciso deixar claro que os fãs da franquia não são exatamente críticos exigentes, nem grandes literatos, muito menos cinéfilos (se fossem saberiam que mais do que uma fanfic de Crespúculo a história é um grande e terrível remake de um filme ótimo chamado A Secretária)

Demanda e oferta

A franquia atende uma demanda. Isso não é a grande novidade, mas é um ponto importante a se discutir.

As mulheres querem conteúdo (seja na literatura ou no cinema) que as excitem. O pornô clássico e gratuito não pensa nas mulheres, nem nas héteros, nem nas lésbicas. É um ciclo vicioso que se arrasta por gerações: Mulheres não podiam ver essas coisas, então se produzia conteúdo de interesse masculino, quando as mulheres começam a ter uma pequena abertura, se deparam com um conteúdo extremamente hostil e logo não se tornam público consumidor e, não sendo público consumidor, os produtores seguem focando no público masculino (mais especificamente, num estereótipo do masculino).

Já a escritora enxerga essa brecha e, com uma história fraca, consegue não só entregar uma trama estimulante, que desperte a curiosidade feminina, como o faz usando um romance como fachada. Dessa forma, muitas mulheres que teriam vergonha, ou receio de recorrer a soft porn por pura vontade de sentir os calafrios, se sentem confortáveis para mergulhar na história, já que o sexo é ‘apenas parte do pacote e não o foco’.

E de muitas maneiras a trama, com toda essa jornada pela descoberta de práticas sexuais menos papai e mamãe, também conquista seguidoras que querem sair do comum, que querem descobrir novas coisas, mas que o querem fazê-lo acompanhadas de um parceiro com quem tenham uma conexão sentimental e confiança. Afinal, para muitas mulheres o prazer por si só ainda é considerado algo ruim, se não pecaminoso, ao menos sem propósito, uma maneira solitária de descoberta.

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A propósito é importante deixar claro que as cenas de dominação da trama são, como eu posso dizer, bonitinhas. Quando ela pede para que ele lhe mostre o pior que poderá fazer com ela, ele se assegura que é isso mesmo que ela quer e então, vemos uma sequência de 10 chicotadas, que inclusive, não agradou nem um pouco a moça. No geral, são algemas, chicotes, “deixa comigo que eu te como e você não faz nada”, mas não tem situação se aproveitar do sofrimento dela para extrair o dele, nem de fazer nada sem o consentimento dela, (coisa que a gente vê de monte no pornô, e que muitas vezes nem atuação é). Inclusive, sobra cenas de Sr. Grey mergulhando a cabeça entre as pernas de Anastácia.

A dominação dele acaba focando sempre no prazer dela.

Mas como pode ser romântico?

É bastante aceito que a história é um sucesso, ela atende essa demanda. Mas daí pra frente, não se entende como essa doidera de relação pode ser considerada romântica, afinal, o cara tem a síndrome de macho alfa, comedor, acha que pode conquistar e comprar o mundo, enfim, é uma versão de Rei do camarote com mais whey protein e menos senso de humor.

Nesse ponto a gente precisa entender que o pensamento da sociedade muda gradualmente. Ainda que nos dias de hoje se fale muito em igualdade de gênero, de salários e liberdade sexual, para a geração que foi criada com o sonho de encontrar o príncipe encantado e se entregar a ele, os novos ideais não substituem os velhos. Eles se sobrepõem.

O filme é exatamente essa junção que tentar conciliar o sonho do príncipe, homem de verdade, provedor, com a ideia de mulher inteligente, que não precisa dele, nem de nada que venha dele, mas que o ama por outros fatores. Ela não liga para luxos, nem os quer, mas fica admirada de todas as coisas que ele faz por ela, pequenos presentes, cuidados cotidianos, coisa que não são valorizadas pelo preço, mas que só o dinheiro de sobra permite. É claro que isso acaba gerando contradições e o filme e o livro estão cheios delas.

De certa maneira a segunda parte da história redime um pouco a primeira. Não é que daí pra frente a história fica boa, mas é que se percebe que a Anastásia não gosta de ser manipulada por ele, ela simplesmente aceita na esperança de mudá-lo pouco a pouco. E aí entra uma questão muito interessante, a franquia acaba refletindo o ideal feminino de transformar os homens sem entrar em conflito com eles.

A mocinha aos poucos elimina os absurdos que ele cometia no primeiro livro/filme, sem nunca brigar ou chamá-lo de machista, nem ao menos tenta provar seu ponto ou ter razão. Ele, por sua vez, cede por amor. Para as fãs, o romance do filme mora justamente nessa mudança que a Anastácia provoca nele. E mais uma vez a franquia ocupa esse espaço de defender a liberdade da mulher sem entrar em conflitos com conservadorismos.

Se a Anastácia deixa as conquistas sacanas ao encargo do Sr. Grey, em 50 tons mais escuros ela quer que ele abra seu coração pra ela. Ele tem feridas físicas e psicológicas nas quais ele não quer deixá-la tocar em nenhum sentido – até então ela transava de mão amarrada. Enquanto o homem busca ensinar os segredos obscuros do sexo a ela, ela se dedica a conseguir chegar na raiz do problema emocional dele e curá-lo.

A abertura emocional do dominador é uma conquista tão grande para ela quanto [spoiler alert] o sexo anal será para ele.

Conclusão

Todo grande sucesso de uma geração diz muito sobre a modo de vida desta.

É claro que Cinquenta Tons de Cinza representa apenas uma parte das pessoas que vivem nesses anos dois mil e uma dezena e que não se definem por uma geração específica. Mas sobre esse grupo, não se pode dizer que são um bando de mulheres que na verdade gostam de apanhar e procuram um homem rico.

A franquia e seu sucesso, acabam revelando que o mundo está mudando, mas que está mudando lentamente, que muitas mulheres não querem uma ruptura radical, não desejam se envolver em uma guerra de sexos, mas querem com amor, chegar à uma equação mais equilibrada.

Tudo bem que seus companheiros sejam protetores e provedores, desde que não se esqueçam que elas precisam de espaço e que são capazes de se virar sozinhas. É legal que eles sejam selvagens na cama, e até podem tomar as rédeas da situação, mas é desejável que eles se preocupem e se excitem ao dar prazer pra elas. Que tudo bem se eles forem durões e tiverem ciúmes, mas que eles precisam se abrir e falar mais dos seus sentimentos.

Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro <a href="https://www.amazon.com.br/Amulherar-se-repert%C3%B3rio-constru%C3%A7%C3%A3o-sexualidade-feminina-ebook/dp/B07GBSNST1">Amulherar-se" </a>. Atualmente também sou mestranda da ECA USP