Quando o sereno da madrugada começa a cair e quase toda a cidade adormece em um sono profundo, um súbito e estridente ruído interrompe a calmaria das principais metrópoles brasileiras. Ao longe, pode-se perceber o feixe dos faróis, rompendo veloz a escuridão da larga avenida, acompanhado de uma inconfundível sinfonia da subida do giro de um motor envenenado.

Conta-girosEssa cena é comum em qualquer metrópole do país. Os protagonistas são, em sua maioria, jovens que emparelham seus carros em eletrizantes disputas noturnas regadas por descargas cavalares de adrenalina. Desafiando as leis de trânsito, os limites do automóvel, do piloto e, principalmente, da própria vida, essas pessoas vêm competindo com seus automóveis em vias públicas há muito tempo. Para que fique claro: a prática de
racha de rua
, cada vez mais em destaque na mídia, não é um fenômeno momentâneo.
racha

Tudo começou no início do século XX, onde data o primeiro registro histórico de uma competição clandestina entre carros de ruas. O aconteceu quando o proprietário do então recém adquirido Ford 1929, o segundo de Detroit/EUA, cruzou com o outro exemplar idêntico da cidade. Reza-se a lenda que o perdedor do desafio teria reajustado a alimentação de seu automóvel e proposto uma revanche. Após a saborosa vitória, o piloto do bólido teria sido convocado por um desafiante de Chicago, cujo veículo era ainda mais envenenado.

E, desde então, têm sido sempre assim. Provavelmente, o seu pai ou seu tio já dirigiram uma Brasília com “kit mil e oito e duas 40”, ou um Maverick Quadrijet e talvez um Opalão 250-S. Se realmente nunca foram apaixonados por velocidade e adrenalina, tampouco desrespeitaram as normas vigentes de trânsito, certamente possuíam algum conhecido que já o fez. Pergunte a eles se nunca conheceram alguém que dirigia um automóvel preparado, desbravando o automobilismo clandestino nas ruas e avenidas de nosso país.

Nos EUA, em meados anos 30, a preparação de automóveis atingia um patamar sem precedentes. A legislação era precária, a idade era pouca e a necessidade por fortes emoções era enorme. Esse coquetel explosivo culminou no surgimento de uma cultura que foi exportada para o mundo inteiro: o tuning. É importante ressaltar que não estamos falando do que se vê hoje nas ruas em que a garotada customiza veículos populares com apetrechos chamativos, iluminação especial, pintura colorida e som altíssimo; estamos falando de preparação de motores.

A cultura conhecida como Hot Hod (biela quente em português) consistia em um movimento cultural que levava multidões para pistas de corrida construídas clandestinamente em áreas rurais. Eram quilômetros de retas em que as “baratas” com motores V8 totalmente envenenados percorriam lado a lado cada centímetro da pista até que um vencedor despontasse. Esse movimento cultural foi pai de uma geração inteira de americanos com suas músicas, vestuários e comportamentos específicos. Era uma tribo que perduraria muitos anos enquanto as autoridades não tomavam providências duras.

Através de superproduções de cinema que expuseram o submundo dos rachas de rua na atualidade, a chama do automobilismo clandestino foi avistada a milhas de distância pela sociedade. A explosão da prática de rachas está levando, cada vez mais, os proprietários de carros comuns à especializadas oficinas de preparação de motores. Os profissionais que administram as preparadoras afirmam que envenenam automóveis que aceleram nas pistas. Entretanto, esses bólidos com motores especiais circulam normalmente pelas ruas ostentando a mesma aparência de um automóvel absolutamente original. Desviando a atenção das autoridades, os jovens marcam encontros via internet e lotam os postos de combustíveis, de onde os veículos partem em alta velocidade para as disputas.

Posto de combust�veis

A mídia tem especulado por décadas as motivações dos jovens que aceleram nas ruas de forma irresponsável envolvendo-se em gravíssimos acidentes que, com muita sorte, não vitimam fatalmente motoristas e transeuntes da via. As explicações de “especialistas” são variadas. Há aqueles que afirmem que o consumo desregrado de bebidas alcoólicas é a principal razão da ocorrência de pegas. Há também a esdrúxula visão da psicologia que, muitas vezes, crê que a motivação dos jovens contraventores seja a grande necessidade por auto-afirmação perante os amigos, as garotas e a tribo como um todo.

No intuito de desmistificar algumas das lendas a respeito desse fenômeno, conversei com um aficcionado participante de competições ilegais de rua que me falou um pouco sobre os bastidores dessa cultura. A. G. H é um universitário de 21 anos que trabalha até as 18 horas em uma empresa que presta consultoria em informática. O estudante de sistemas de informação vai de casa ao trabalho dirigindo seu Volkswagen Voyage 1989. Aparentemente pacato, o Voyage preparado reserva grandes surpresas aos desavisados.

Leia também  Quero ver quem é macho de nadar em águas abertas | Regras do Jogo #2

O Voyage, na verdade, trata-se de um bólido sobrealimentado com um turbocompressor que ainda conta com óxido nitroso. O nitro como é chamado, é um gás comburente que quando injetado nos cilindros, aumenta instantaneamente a potência do automóvel em mais de 60 cavalos (potência adicional equivalente a um motor 1.0 inteiro!). O carro possui cerca de 240 cavalos de potência, mais que um Audi A3 Turbo e equivalente a um Audi TT, por exemplo.

O piloto do Voyage afirma que não sabe explicar o que passa dentro de sua cabeça quando decide cruzar avenidas a mais de 180 Km/h. Segundo ele, não se trata nem sequer de uma competição e sim de uma indescritível paixão pela velocidade: “Algumas vezes não tem ninguém andando junto. Basta olhar um asfalto novo, lisinho, aquela curva que já conhece abrindo ali na frente, e a turbina que estava dormindo aí em baixo do capô começando a soprar. Não sei explicar. Começo encostando o pé no acelerador bem de leve e logo que sinto as costas pressionando o banco, piso mesmo. Vou com tudo!”.

RachaAviso aos navegantes: dominar uma máquina como o Voyage de A. G. H. não é tarefa das mais fáceis. Um carro extensamente preparado não se assemelha em nada ao 1.0 que você retira de uma concessionária. Isso, eu posso garantir! Para que o veículo não sofra quebra de peças graças à nova cavalaria, ele também recebe embreagem de cerâmica e câmbio especial de corrida. As modificações tornam a condução do veículo bastante peculiar e pode, tranquilamente, dar um susto aos desavisados: com uma leve pressão no acelerador o automóvel atinge os 100 Km/h apartir do 0 em apenas 7.5 segundos, transformando boa parte dos pneus em fumaça.

As conseqüências de um eventual acidente ficam absolutamente relegadas a um segundo plano quando os pilotos de rua têm aos seus pés a embreagem que pode liberar centenas de cavalos enfurecidos para empurrarem um automóvel pelas retas e curvas da cidade. O próprio A.G.H. conta que nesse ano perdeu um amigo cujo Astra Turbinado destracionou em uma curva chocando-se contra um poste após cinco capotagens. O medo de colidir e encerrar prematuramente a vida de um inocente é presente sim, ao contrário do que pensa a mídia taxativa. Todavia, o estudante admite que quando a adrenalina sobe para a cabeça, o pé empurra o acelerador contra o assoalho ignorando qualquer resquício de razão.

De modo a reduzir à incidência desse tipo de crime as autoridades estão aumentando a fiscalização nas ruas na tentativa de identificar os contraventores. Os automóveis com modificação das características originais são apreendidos e os proprietários são autuados. Em caso de flagrante do racha, os praticantes podem ser presos e responderão processo judicial. A repressão crescente aos pegas parece não estar surtindo efeito algum no combate à clandestinidade. Na verdade os jovens, cada vez mais, especializam-se em burlar as blitzes e batidas dos órgãos responsáveis por manter a ordem no transito.

Por outro lado, algumas iniciativas recentes que visam tirar os praticantes de rachas das ruas, parecem estar funcionando. Um exemplo é o Campeonato Metropolitano de Arrancada de Porto Alegre em que se pode inscrever um carro de rua para competir na pista por uma taxa irrisória. A competição que iniciou tímida em 2004, cresce a cada ano tanto em participantes como em premiações. A oportunidade permite que empresas, cujo principal produto são peças de alta performance, possam expor sua marca legitimamente através de patrocínio aos competidores.

Metropolitano

Os participantes do “racha” tentam otimizar a preparação do motor e reduzir o tempo necessário para percorrer os 201m de arrancada a cada etapa. Eu visitei a última etapa do evento realizado em um fim de semana na capital gaúcha. As arquibancadas estavam repletas de aficcionados e na pista havia uma infra-estrutura profissional para garantir a segurança dos competidores. A quantidade de carros de rua inscritos para acelerar era impressionante. Público e competidores desfrutaram de pegas alucinantes em que o cronômetro registrava décimos de segundos de vantagem para determinado piloto. E o que é melhor: todos foram ao local do evento de carro – respeitando o limite de velocidade. Esperamos que iniciativas como essas sejam tomadas em outras metrópoles do Brasil.

Aguarde, na próxima parte dessa matéria,A minha primeira impressão ao pilotar um Voyage Turbo/Nitro .

sitepdh

Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.