Não importa o dia em que você assistir ao noticiário, nem qual o noticiário específico que você estará assistindo, ele estará recheado de crimes e violência. São crianças defenestradas, alunos alvejando professores e playboys açoitando domésticas. O repertório de agressões é vasto, e os cenários, diversos. A sociedade se sente impotente e desprotegida. A barbárie parece onipresente. Mas não será essa uma oportunidade de parar e pensar se é tudo isso mesmo ou se não estamos enxergando a situação como um todo?
Seis da tarde, o âncora enverga seu terno risca de giz em frente às câmeras. Após uma introdução com bravatas efusivas, chama um link externo e ao vivo. O que se vê é uma imagem aérea de uma porção da metrópole. Pelo close esforçado da câmera do helicóptero, começam a se distinguir, entre a aglomeração, alguns carros e motos da polícia. Logo, a figura de alguém aparece alinhavada ao chão. Ali, deitado, mais um crime. Ali, brotando, mais audiência.
O que se diz é que notícias ruins chegam rápido. E a imprensa moderna vem se esforçando arduamente para transformar esse aforismo em verdade. Ao terminar de se assistir ao noticiário citado no primeiro parágrafo, ficam aquela sensação apocalíptica e a certeza de que em breve um maníaco atravessará a janela para furar nossos olhos e pilhar nossa carteira. Dormimos de luz acesa.
Mas a violência, de certa forma, é necessária.
Pode parecer estranho, mas ela é peça fundamental de nossa estrutura social. Em seus vários tipos: física, psicológica, sexual, sonora, social, entre outras. O Estado só consegue se costurar e existir a partir do monopólio da violência. Renunciamos individualmente ao nosso direito à prática da violência em troca da promessa da zeladoria deste órgão maior por nossos direitos “fundamentais” – em especial o direito à vida. Por isso o homicídio e o assassinato atraem tantos holofotes no ramo do Direito. E da TV.
O que vem acontecendo é que esse acordo está cada vez mais frouxo. Os tentáculos do Estado deixaram de alcançar determinados espaços na sociedade. Seja por falhar em seu papel educacional, seja por falhar em seu papel econômico, o próprio Estado regou as sementes dos chamados “Estados paralelos”. E como todo Estado legítimo, esses paralelos buscam o domínio sobre a violência.
Com mais alguns ingredientes picantes (ganância, vaidade etc), é dessa frouxidão é que emerge a figura da milícia. Trata-se de uma instituição que vem lá do Brasil colonial, quando ainda estávamos divididos em capitanias hereditárias. Naquela época, da mesma forma que hoje, o Estado – no caso, o português – não conseguia desenvolver sua prerrogativa de onipresença social. Assim, o próprio povo passou a se organizar para se defender e, claro, coagir.
No Brasil de hoje, as milícias são uma realidade palpável. Não só as do Rio de Janeiro, que forçaram o deputado Marcelo Freixo a deixar o país, mas também aquelas em nossas inóspitas fronteiras, formadas inclusive por indígenas. Sem falar nos diversos coronéis rurais que mantém seus exércitos particulares nos rincões deste país. À revelia da vontade política, as milícias são uma realidade e integram o corpo social brasileiro.
Talvez elas sejam o sintoma mais claro da degradação social que vivemos. Nem tanto no aspecto material, já que hoje conseguimos produzir tanto quanto consumimos e acumular cada vez mais. A distribuição não é das mais justas, é verdade, mas essa questão se torna secundária a partir do momento que temos a violência como cerne de nossa organização.
Alguns vão dizer que isso é bobagem e que o grande problema é o lapso de Educação de nosso povo. Isso é parcialmente verdade, uma vez que a violência também é o fio guia da nossa maneira de educar. A sala de aula tal qual é hoje está mais preocupada em condicionar do que ensinar. Não há transmissão de conhecimento, mas sim uma enfadonha reprodução técnica. A violência entra por meio do medo, afinal temos que “estudar para ser alguém na vida”. Esse tipo de coerção é uma violência por si só.
Portanto, enquanto a violência for a pedra fundamental de nossas instituições, nosso caro apresentador continuará a ter uma audiência infinitamente elástica quando distribuir suas bravatas efusivas ao final da tarde. Ou será só a natureza humana?
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