Estou sentado em uma sala cheia de novos funcionários e hoje é meu primeiro dia na empresa. Assim como eu, outras 30 pessoas acabaram de ser contratadas por uma grande multinacional. Lá na frente, um dos diretores comenta o plano de carreira, a missão e os valores da empresa – ao final pede para cada um se levantar e se apresentar. A maioria dos presentes não parece lá muito interessado nem na fala do diretor nem nas funções dos novos companheiros de trabalho; até que o microfone chega a mim:
—Meu nome é Lucas e vou trabalhar como Piloto de Testes.
A sala toda fica em silêncio e se vira para mim com cara de espanto, até aquele engenheiro sênior que não saiu do celular o tempo todo olha para trás.
Essa é a minha primeira lembrança desta época.
Trabalhei por pouco mais de um ano como piloto de testes — mais especificamente — piloto de testes de pneus. Favor, não confundir com piloto de corrida (coisa que cheguei próximo também), nem com com Motorista de teste — que é aquele profissional que geralmente faz testes de durabilidade e de longa duração dos mais diversos componentes. Posso dizer que foi uma época em que aprendi muito e também tive várias experiências boas e outras nem tanto; esta será a versão bem resumida.
A contratação
Essa história toda lá de cima começou quando recebi um email de um grande amigo e ex-chefe com o assunto: olha isso. Nele, estava um link para uma vaga:
Procura-se Piloto de Testes.
Já tinha ouvido vários boatos sobre isso, mas pela primeira vez era uma chance real de trabalhar nessa área. Cheguei a pensar em nem mesmo mandar, pois parecia algo fora da realidade. Porém, com um empurrão extra da minha curiosidade enviei meu melhor CV.
Deste dia até me apresentar no microfone foram exatos três meses de entrevistas, testes, avaliações e exames médicos — sério, muitos exames!
A primeira entrevista foi via telefone mesmo, para me conhecer melhor e agendar um dia numa empresa de recrutamento. Por lá, respondi um questionário de 180 questões de todo o tipo que possa imaginar (até como eu me comportava e uma festa). Em seguida, mais 20 testes de lógica e alguns outros que mais pareciam exame psicotécnico. Para fechar a tarde, ainda tive que fazer uma redação de 60 linhas (em inglês) para finalmente chegar ao bate papo com a psicóloga — para quem tinha que explicar coisas sobre frenagem e pilotagem. Como você deve imaginar, alguns candidatos já desistiram antes mesmo da redação.
Desta primeira parte, acredito que ficamos em cerca de 20 candidatos no total. O próximo passo foi a bateria de exames médicos. Fiz exame de sangue, de urina, audiometria, tirei radiografias de praticamente o corpo todo. Teve teste de visão, de reflexo, de alongamento, de massa muscular, esteira, eletrocardiograma e eletroencefalograma — que eu me lembre, só não teve espermograma.
A terceira e última parte foi dividida em duas para finalizar. Pela manhã tínhamos entrevista com a diretora de RH e em seguida com o chefe de pesquisa e desenvolvimento. Na parte da tarde era o momento de vestir o capacete e ir para a pista. Nesta hora estávamos apenas em 4 candidatos e um deles até veio me falar: cuidado aí, hein, acidente desclassifica na hora. Vê se pode um negócio desse meu povo. Enfim, depois de tudo isso, a vaga finalmente era minha. Foi a hora de mudar de casa e começar a trabalhar.
Meu escritório é na pista
Sim, caro leitor, o meu dia-a-dia era bater cartão na pista de testes e ficar por lá o dia todo. Em dias mais corridos, eram mais de 400 km percorridos fazendo as avaliações de pneus de todo tipo. Nossas demandas chegavam por e-mail e, assim, era formado nosso calendário de pista. Tínhamos uma grande equipe com vários pilotos mecânicos e engenheiros. Os testes podem ser divididos em dois grandes grupos — testes instrumentados e testes de pilotagem ou handling.
O primeiro tipo é feito pela engenharia colocando sensores de movimento, pressão e GPS nos veículos. Assim, é possível medir o tempo de frenagem, força G, aquaplanagem, ruído, vibrações e derrapagem dos pneus. Já o segundo tipo exige sensibilidade total. Cabe ao piloto fazer voltas rápidas e constantes para no final montar uma planilha com suas percepções — quanto mais detalhista e atento o piloto, melhor são os dados conseguidos. Imagina uma tabela com todo tipo de quesito sobre pneus para que você coloque notas em todos eles; e ao final uma conclusão.
A maioria dos testes de pneus são de novos produtos que ainda não foram lançados no mercado — então, pensa numa responsabilidade gigante. A engenharia, junto com o pessoal de materiais cria um novo pneu. Porém, faz dez variações dele mudando composição, número de camadas e desenho. Cabe ao piloto de testes avaliar todos eles e dizer qual deles tem melhor frenagem, melhor aderência, melhor absorção de impactos — tem até teste no piso molhado. Ao final, geralmente, 5 pneus são selecionados e voltam para a engenharia que refina ainda mais estes até chegar a 3 opções e, por último, definir a melhor composição que será usada na produção final.
Outro tipo de teste que faziamos é o chamado benchmarking em que testamos o “nosso” pneu frente aos principais concorrentes do mercado. Assim, é possível identificar onde melhorar e em quais pontos ou estamos em vantagem frente a nossa concorrência.
Arquivo confidencial
Sabe aqueles carros que ainda não foram lançados e andam por aí com camuflagem pesada? Ou mesmo aqueles carros com a carroceria cheia de papelão e com placas verdes? Em um dia comum tínhamos 4 ou mais desses na garagem — devidamente escondidos, é claro.
Muitos fabricantes fazem o desenvolvimento de seus novos modelos juntamente com as fabricantes de pneus, então, basicamente, ficamos sabendo antes de todo mundo. Por serem os únicos pontos de contato com o solo, muitas vezes, a suspensão e freios recebem os ajustes finais dependendo do modelo de pneu que sairá de fábrica. O que muitas vezes é o melhor pneu pode não ser o mais barato, nem o com o perfil que cada marca procura entregar em seus veículos. Assim, saber ouvir o cliente é fundamental.
O principal também é nunca comentar sobre esses carros novos — imagina isso para um jornalista cheio de amigos no setor. Não foi fácil mas tudo fazia parte do contrato, até mesmo após a minha saída ainda são mais 3 anos de “embargo” de informações.
Inclusive, é por isso que nesse texto não tem nenhuma foto minha na pista pilotando veículos em velocidades alucinantes. 😉
O pneu fala
Apesar do certo “glamour” que envolve a profissão, o dia a dia não é nada fácil. Não vou mentir que é um ótimo assunto de balada e também é ótimo de conversar com que gosta de motores. Porém, no dia a dia nada disso acontece. São testes e mais testes no sol, no frio e na chuva. Para alguns pneus especiais também existem testes de alta velocidade e testes off-road. Faz parte também trocar pneus e colocar a mão na graxa, então, conhecer um pouco de mecânica é essencial. Imagina só viajar com tudo pago para Goiânia para acelerar no Autódromo de lá. Sonho, né? Porém, a viagem é feita de caminhão. São 15 horas, fora carregar e descarregar cerca de 300 pneus de todos os tipos. Ficar dez dias fora de casa também é comum, o que pode ser ruim ou bom.
Por fim, a principal e mais difícil coisa de se aprender é a sensibilidade. Ao pilotar é preciso saber ouvir sinais quase imperceptíveis que os pneus nos dão.
Apesar de não falar sabendo interpretar esses sinais podem ajudar na fabricação de um pneu mais seguro e melhor.
Pra mim, foi um período muito rico, aprendi muitas coisas que são úteis agora que sou jornalista. Nada como a experiência vivida na pele, na hora que você quer tratar de um determinado assunto.
E você, sonha em ser piloto de testes? Tem alguma dúvida com a qual eu possa ajudar?
Podemos falar também sobre pneus, claro. Você é daqueles que repara nos pneus no carro? Tem uma marca preferencial? Já trocou os pneus originais em busca de mais conforto ou uma resposta mais esportiva? Ou é daqueles que só lembra do pneu quando fura e não lembra nem ao menos de calibrar?
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