E se eu te dissesse que 80 pessoas podem decidir previamente em quem 200 milhões irão votar? E se eu te dissesse que votando, você está decidindo não só esta eleição, mas a próxima?
Sim, é exatamente isso. Coisas estranhas acontecem em período eleitoral, com a divulgação das pesquisas de intenção de votos. Talvez você já tenha percebido que as pesquisas de intenção de voto criam um efeito harmônico que se propaga pela sociedade e coloca todos para dançar uma música estranha, que imaginam estar cantando juntos. Como naquelas vezes em que andamos com alguém e acabamos fazendo um trajeto misterioso, simplesmente para acompanhar a outra pessoa, e sem saber que ela estava também simplesmente nos acompanhando.
Pesquisas eleitorais criam uma harmonia que se propaga pela sociedade e coloca todos para dançar.
Isso é um pensamento comum. Mas a verdade possui vários andares, e se olharmos o edifício inteiro – o que inclui um vasto subsolo – veremos que as coisas são bem mais estranhas do que parecem.
Vamos supor que em determinado país, com 1 milhão de habitantes, um instituto de pesquisas seja contratado para fazer uma pesquisa de intenções de voto para cinco candidatos ao cargo de Presidente da nação. Este instituto, obviamente, não entrevistará cada um dos 1 milhão de habitantes do país, o que seria caro e impossível (e tornaria, na verdade, a eleição desnecessária). Em vez disso o instituto faria o que todos os institutos fazem: escolheria uma amostra representativa e variada, de um número adequado de pessoas, e conduziria a entrevista só com elas, esperando que essa amostra corresponda o melhor possível ao conjunto da população. No caso deste país do exemplo, o instituto decide que apenas mil pessoas, de diferentes lugares e com diferentes características, já está de bom tamanho.
As pessoas são entrevistadas e o resultado aparece: 50% dos entrevistados votarão no candidato A, 30% votarão no candidato B, e o restante fica dividido entre C, D, E, branco, nulo ou indeciso. A pesquisa é publicada no jornal, causando comoção. Todos falam sobre ela. Os que torcem pelo candidato A pulam de alegria: somados os votos de todos os outros, mesmo assim ele ganha. Os que torciam por B entram e desespero e partem para o tudo-ou-nada. Quem vota em C, D e E migra para A ou B, para ter alguma chance de interferir no processo eleitoral, preocupados em “não jogar o voto fora”. Vários indecisos se decidem. Os votos tomam a sua forma final na cabeça das pessoas.
Talvez você não tenha percebido, Neo, mas neste instante uma coisa bastante curiosa ocorreu. Um pensamento que, observado com mais calma, vai te mostrar uma coisa espantosa.
O voto de duzentos milhões de habitantes (a população do Brasil, em 2013), é como algo etéreo, incerto, em suspensão no plano das ideias. Relativamente poucos já possuem seu voto definido de início – de regra, apenas aqueles que possuem uma ligação mais forte com algum partido, o que não é o caso do eleitor médio brasileiro. Os demais contemplam possíveis votos, em diferentes candidatos, com níveis diferentes de consideração em diferentes momentos da corrida eleitoral. Como o famoso experimento mental do Gato de Schrödinger, que só descobrimos vivo ou morto ao abrir a caixa, existindo de fato nos dois estados ao mesmo tempo até que a observação elimine a incerteza, o voto também tem essa característica heisenbergiana. Enquanto estou escrevendo este texto, cogito em quem votarei, e a incerteza só se esvairá completamente quando o maldito botão verde for apertado.
Mas, como disse, não só eu faço isso: a maioria da população também é assim. E aqui está o ponto. Literalmente centenas de milhões de votos pairam “no éter”, se solidificando em passos bruscos, principalmente pela observação de resultados de pesquisas de opinião de… quatro mil pessoas.
Não quero dizer, com isso, que quatro mil pessoas têm o poder de decidir o que duzentos milhões farão. Não, Neo, o buraco do coelho é mais profundo ainda. Um número muito MENOR de pessoas já tem esse poder.
Supomos que o candidato A tem 49% de votos, o candidato B tem 25% de votos e o candidato C tem 24% dos votos. Aqui a situação é mais delicada: uma diferença de mísero 1% impede o candidato A de vencer já no primeiro turno. Da mesma forma, uma diferença de 1% impede o candidato C de ir ao 2° turno. O que acontece?
Pode ocorrer uma debandada dos potenciais eleitores de C, que “não querendo jogar o voto fora”, votam em A ou B, para “influir de verdade na democracia”. Um voto em C, pensam, é como atirar o Coração do Oceano no fundo do mar. Um voto é precioso, e deve ser útil.
O que eles falham em ver – estas DEZENAS DE MILHÕES de eleitores falham em ver – é que estão se acovardando perante a mera opinião de… apenas 80 pessoas, o número real que corresponde àqueles 2% na amostragem dos entrevistados. Dezenas de milhões de eleitores solidificam seu voto e abandonam seu candidato por causa da opinião (que nem é tão sólida assim, elas podem muito bem estar dando uma resposta casual e provisória ao entrevistador) de meros 80 pedestres. Opinião que, vejam só, pode ser ela mesma uma resposta influenciada por uma pesquisa anterior. E aquela por outra, e aquela por uma outra ainda, colhida quando os entrevistados nem conheciam bem os candidatos, e todos, com a exceção de um ou dois, eram apenas meros nomes estranhos.
Esse é o poder catalisador das pesquisas, que instituem, aos poucos, uma profecia auto-realizável. As pesquisas desenham as raias por que corremos, balizam nosso processo de formação de opinião, fazem e destroem candidatos.
Esse é o poder catalisador das pesquisas, que instituem, aos poucos, uma profecia auto-realizável.
Bom, como sei que a esta hora os estatísticos devem estar malucos de raiva comigo, deixem-me explicar: não estou dizendo que tendências prévias não existem, e que os princípios da estatística estão errados, longe disso. Apenas estou dando um enfoque material ao processo de decisão.
Mas eu tenho uma segunda pílula. E se eu te dissesse que abandonando o voto no seu candidato do coração para obedecer ao destino escolhido a você por aquelas 80 pessoas, você está votando também na próxima eleição? Sim, aquela, daqui a 4 anos?
Vamos supor que você goste de sanduíches. Você ama sanduíches. De noite, assolado por uma vontade incontrolável de comer sanduíches, você vai à lanchonete mais próxima na esperança de matar a fome com sua iguaria favorita.
Chegando lá você olha ao redor, e todos estão comendo pizzas. Ninguém, em mesa alguma, está comendo sanduíches. Você olha no cardápio, e só pizzas. Desolado, você chega no atendente e pede…uma pizza.
A pergunta é: por que você não pediria sanduíches? A sua vontade é de comer sanduíches. Você poderia dizer ao atendente “seria muito bom se vocês servissem também sanduíches”, e ninguém sairia ferido. Na verdade, você sairia com a mesma coisa (uma pizza), mas o atendente sairia com uma coisa adicional muito valiosa: a informação de que você gosta de sanduíches.
Aliás, várias das pessoas que estão ali podem estar comendo pizzas apenas porque não haviam sanduíches sendo oferecidos. E os sanduíches não são oferecidos justamente porque, ao pedir apenas pizzas, as pessoas não sinalizam ao dono do estabelecimento que de fato sanduíches teriam também uma ótima aceitação.
Reclamamos que sempre nos são oferecidas as mesmas opções, mas o fato é que não sinalizamos aos partidos que estamos abertos a outras.
Troque o exemplo das pizzas e sanduíches por tipos de candidatos e propostas políticas, e imagine o atendente e o dono do restaurante como os partidos. Reclamamos que sempre nos são oferecidas as mesmas opções, mas o fato é que não sinalizamos aos partidos que estamos abertos a outras. No exemplo dos 2%, acima: se todos abandonarem suas intenções de votar em C e votarem em A e B, no final C não terá de fato quase nada. A eleição, em si, é uma pesquisa, e a mais fiel. Os partidos, no futuro, se lembrarão disso na hora de lançar candidatos, fazer alianças e negociarem apoio: o candidato C (apesar de ser querido por 24%) é um “candidato de 1%”.
Mesmo que um candidato não tenha chances de ganhar uma eleição, há proveito em manter o voto nessa pessoa: é informação útil passada aos partidos. Acreditar que vai jogar o voto fora (mesmo com a certeza de que seu candidato não vai para o 2º turno) é um pensamento simplista demais. Não há vergonha em “perder” a eleição. Ninguém cobrará de nós que nosso candidato não foi adiante.
Seu voto, seja em quem for, é um sinalizador: sinaliza a existência de um público que concorda com aquele programa.
Seu voto, seja em quem for, é um sinalizador: sinaliza a existência de um público que concorda com aquele programa. Se o candidato acabar o primeiro turno com 25%, 10% ou mesmo 5%, mesmo que não vá para o segundo turno, isso sinaliza à classe política a existência de um público com aqueles valores, o que faz os partidos mudarem seus programas e ações naquele sentido.
A política muda para oferecer produtos (candidatos) que canalizem certas demandas eleitorais. Se não sinalizarmos a demanda, só nos serão oferecidas sempre as mesmas opções – afinal, para que oferecer sanduíches, se só compramos pizzas?
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Nota do editor: este texto foi originalmente publicado em 01 de outubro, no site Ano Zero, editado pelo amigo e colaborador da casa, Victor Lisboa. Ao perceber o potencial do artigo, ele gentilmente nos ofereceu republicação, proposta que aceitamos de primeira, ao ler o artigo lindo que nos foi compartilhado. Agradecimentos sinceros. Acessem o Ano Zero e vejam outros artigos bem interessantes e a proposta deles, de que “todo caminho é um lugar de encontros, e [o Ano Zero] pretende construir uma avenida na qual possam transitar todos aqueles interessados em enfrentar, com um olhar lúcido e amoroso, os desafios de um futuro que a cada dia chega mais rápido, em que o amanhã invade o agora”.
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