E para aqueles que não me conhecem assim há tanto tempo, uma informação que poderá mudar a sua vida:
Eu já fui dublê. E pior: exerci essa função no SBT durante algum tempo. Não, não tenho orgulho.
Mas de qualquer forma, fui pago e o trabalho era divertido. Na época em que eu fazia Kung Fu, meu professor gostava de me arrumar trabalhos que pudessem de alguma forma me quebrar inteiro e me deixar dolorido, por motivos imbecis que não vale a pena comentar aqui (digamos que ele não gostava de mim porque ele queria algo que eu tinha).
Assim, me arranjou um trabalhinho na TV.
“Mytho, quer fazer um dinheirinho fácil?”
“É legal?”
“100%”
“O que eu tenho que fazer?”
“Digamos que vai demonstrar suas habilidades marciais” (não disse exatamente isto, mas foi este o sentido).
Ainda tentei insistir um pouco mais, mas ele negava-se a dizer. Aceitei mesmo assim, pois grana fazia bastante falta.
Cheguei ao local combinado, e fiquei surpreso ao constatar que o endereço no meu papelzinho coincidia com um prédio onde se podia ler algo do tipo “Crazy Stunts – Associação de Dublês”
Bati à porta, abriram.
“Mytho?”
“Sim.”
“Entra.”
Lá dentro, paredes forradas com fotografias de gente sendo atropelada, se jogando do alto de prédios altos para cima de colchões insufláveis, lutando, com gesso nas pernas, braços, e sempre sorridentes.
Ao entrar numa sala, 5 ou 6 pessoas conversavam alegremente (pude reconhecer algumas das fotos). Não falaram sobre o trabalho que íamos fazer, e eu não perguntei. Mas fiquei muito mais nervoso a cada minuto que passava.
Finalmente chegou um micro-ônibus com “SBT” escrito do lado. Fomos direto aos estúdios do SBT, se não me engano na Rodovia Anhanguera.
Chegamos a um descampado que tinha uma casinha e uma arena (sim, como aquelas de touradas). Atrás da arena haviam (oh, surpresa) touros. E não eram magrinhos, muito pelo contrário. O SBT anda engordando os bichinhos deles, pude reparar.
Chegou o diretor de filmagem, cumprimentou-nos a todos, e disse “podem ir trocar de roupa”, apontando para a casinha, que então descobriu-se ser um vestiário.
Chegando lá, fui presenteado com o “kit mate-se você mesmo”, composto por:
– Sapatos
– Calças de cowboy
– Camisa xadrez de cowboy
– Chapéu de cowboy
– Tornozeleira
– Joelheira
– Protetor genital (abençoado)
– Protetor de coluna
– Protetor peitoral
– Cotoveleira
– Protetor de pescoço
– Capacete
– Luvas de couro
Não sei o que você pensaria ao se deparar com uma arena e touros nervosos lá fora, e ao chegar lá dentro, um pacote “sobreviva ao fim do mundo”, mas eu confesso que fiquei um pouquinho nervoso (bem pouquinho).
Quando acabei de me vestir/equipar/armar/proteger/blindar, percebi que mal podia andar. O pior de tudo era o chapéu de cowboy por cima do capacete. Todos vestidos de alienígenas, fomos nos dirigindo lá para fora, lentamente, pois éramos obrigados a andar de pernas abertas (Durango Kid, anyone?).
Reparei que tinham transformado a arena num belo restaurante. Mesas de 2 metros de altura, cadeiras de 2 metros de altura estavam colocadas na arena. Copos e pratos de plástico no alto das mesas. Maaaaaau presságio…
O diretor de filmagem estava sentado em baixo de uma daquelas câmeras-grua, que fazem filmes de cima. Com um megafone, deu instruções breves:
“Não olhem para o touro nunca. Se caírem, virem-se imediatamente de barriga pra baixo, com os braços protegidos em baixo do corpo. Não se levantem até que eu mande, e quando eu disser ‘corre!’, corram o mais rápido que puderem até o lado da arena que estiver mais perto e pulem pra fora.”
Um pouquinho mais nervoso, entrei na arena com mais uns 6 ou 7 companheiros e fui içado até uma das cadeiras.
“FINJAM QUE ESTÃO COMENDO!!” – Megafoneou o diretor (eu já começava a antipatizar com ele)
Peguei meu garfinho de plástico, minha faquinha de plástico, peguei uma garfada virtual de comida virtual, e encostei o garfo ao capacete, simulando uma dentada virtual naquele garfinho que tremia na minha mão.
“Câmera…… AÇÃO!”
Silêncio mortal.
“ABRE AGORA!”
O barulho de pesadas portas de madeira se abrindo fez-se ouvir naquela pequena arena. Eu achava que esse era o pior ruído do mundo, até ouvir então o som galopante de cascos na areia, a alta velocidade. Como se lesse meus pensamentos, o diretor gritou “NÃO OLHEM PARA ELE!!!”
Fui ouvindo com crescente pânico o barulho de madeira sendo estilhaçada, corpos caindo no cascalho e gemidos de quem cai de costas no chão de uma altura de dois metros.
Subitamente, pelo canto do meu olho direito, percebo uma sombra negra avançando a grande velocidade, larguei garfo, faca e ainda pensei em gritar “GARÇON, A CONTA!”, mas não deu tempo.
A cadeira foi retirada de baixo de mim sem piedade e caí no chão. Não me lembro da posição, mas lembro-me que mal caí rolei para ficar de barriga pra baixo, com meus braços bem protegidos. O touro gostou de mim e ainda me acertou duas vezes, me arrastando pro meio da arena. *Obrigado, Murphy*
Então, depois de mais alguns sons de cowboys sendo jogados ao chão, só se ouviam os passos furiosos do touro. E começou o diretor:
“AZUL, CORRE!” – e lá se ouvia o felizardo de capacete azul levantando e correndo pra saltar a cerca da arena.
“VERDE, CORRE!” – …..
Foi quando ele me chamou (não me lembro da minha cor, infelizmente, vamos assumir que era vermelho): “VERMELHO, CORRE!”
E eu não me mexi. O touro tinha acabado de passar do meu lado, eu não podia me levantar. O diretor queria que o público visse um cowboy ser atingido por um touro, e não seria eu a estrela.
“VERMELHO, CORRE!!!”
Nada.
Foi quando ouvi os passos do touro mais afastados, e decidi correr. Levantei o mais rápido que consegui, e saí dali com o coração na boca.
“escapei de boa” – pensei.
Diz o diretor – “OK, ficou bom, podem ir trocar de roupa para o próximo take!”
PRÓXIMO TAKE? Como “próximo take?” Eu tinha acabado de ser literalmente atropelado por um touro enquanto vestia uma roupa ridícula de cowboy, rolado naquela areia e fugido em disparada por cima da cerca, simplesmente pra TER QUE VOLTAR LÁ PRA DENTRO? E com outra roupa?
Foi com incredulidade que vi o touro sendo recolhido pela porta de madeira, assistentes retirando os pedaços de cadeiras e mesas da arena, e colocando em seu lugar…. puffs. Sim, desses que se colocam na sala. Mas mini. Eram mini puffs. Como um daquele que se vêem no circo para os poodles se sentarem em cima e ficarem nas duas patas dianteiras. Medo.
Caro leitor, procure em sua mente um uso para se fazer com mini puffs, uma arena, e um touro. Antes de continuar a ler, pense um pouco sobre as possibilidades. Se conseguir pensar em algo, parabéns, pois ali na hora eu não consegui.
Entrando no vestiário, só consegui ver o que pareciam ser bolas de golf gigantes, mas com buracos para cabeça, pernas e braços.
“Tirem as roupas e proteções, só vão precisar disto e dos capacetes.”
O alívio de me livrar daquele monte de roupa se misturava com o pavor de voltar lá pra dentro SEM aquele monte de roupa.
Quando entrei naquela bola gigante, estava parecido com o boneco de Marshmellow dos Ghostbusters. A roupa pegava meu pescoço, braços (até o pulso, fazendo com que eu não conseguisse mexer os braços de forma alguma), e as pernas (só deixando os pés de fora, fazendo com que eu também não conseguisse andar).
Não preciso nem dizer que tiveram que me colocar o capacete, pois eu não conseguia. E como também não conseguia andar normalmente, tiveram que me levar de mãos dadas até a arena enquanto eu andava “estilo pinguim”. Chegando lá, me colocaram em cima de um daqueles puffs. Claro, como não pensei nisso antes?
Um boneco de neve em cima de um puff minúsculo dentro de uma arena onde em poucos minutos estaria um touro furioso livre, leve(?) e solto, pronto para usar os chifres (e eu me refiro a chifres verdadeiros, não aqueles que todos nós, homens, temos). Era perfeito. “Jogue futebol com Mytho, a bola”.
Eu não estava sozinho. Havia mais 4 “bonecos de neve” em outros 4 puffs. Mas era EU que estava em frente à porta por onde o touro ia sair. E era EU que estava completamente DE COSTAS para essa porta. À minha frente eu via o diretor e umas 20 pessoas que estavam ali assistindo (assistentes de produção, outros dublês, etc). Todos riam e diziam suas piadinhas para quem estava lá dentro. Não ri de nenhuma.
Com uma familiaridade desconfortável, ouvi o diretor gritar “CÂMERAS…. AÇÃO!”
“ABRE AGORA!”
Foi um pesadelo. Percebia-se que o touro era outro, e mais pesado. Nos touros, normalmente “ser mais pesado” significa “ter mais músculo”, e eu não estava particularmente feliz com isso. Desta vez eu não tinha sequer a minha visão de “canto de olho”, e não podia mexer a cabeça. Tinha que me limitar a ouvir o touro respirando pesadamente, acertar bonecos (que na verdade eram pessoas nas mesmas condições que eu, no mesmo lugar que eu) e observar a reação das pessoas que viam tudo do lado de fora da arena, bem na minha frente.
Então vi quando eles começavam a rir desalmadamente depois de um barulho intenso seguido de um gemido, bem atrás de mim. Vi quando viraram a cara e disseram “aaaaaai” em uníssono depois de um barulho especialmente assustador. E silêncio.
Na verdade um silêncio muito estranho. Foi quando o diretor gritou “VERMELHO, MEXA-SE, SÓ FALTA VOCÊ!”
E entendi. O touro tinha derrubado o pessoal e tinha se desinteressado. Estava ali parado olhando o povo no chão e esqueceu de mim. E o diretor queria que eu me mexesse pra provocar o touro. Claro. Não poderia haver nada que eu quisesse mais no mundo inteiro do que provocar um touro a poucos metros de mim.
Então comecei a mexer os dedos. O diretor queria que eu me mexesse, mas não disse que eu deveria mexer o corpo todo, então mexi apenas os dedos… (eu tinha pensado em só mexer os olhos, mas com o capacete não ia dar pra ver direito)
“GRITA COM ELE, CHAMA ELE”
A brincadeira já estava indo longe demais.
“touro… eh touro” – sussurrei
“CHAMA, GRITA, SE MEXE!”
“EH TOURO! SUA MÃE É UMA VACA!”
Era a mais pura verdade, mas o touro não gostou. Enquanto eu ouvia o pessoal gargalhando à minha frente por causa da piadinha fácil, eles deixaram de estar à minha frente. O touro enfiou o chifre em baixo da minha roupa, perto dos meus pés, e me jogou pra cima. Rolei por cima dele, passando por cima das costas dele.
Ele também não gostou disso. Mal caí no chão ele aproveitou pra jogar um futebolzinho descontraído comigo. Perdi a conta de quantas vezes ele me rolou pela arena, mas o pessoal tava adorando. Tonto, parei de rolar finalmente. O touro perdeu o interesse novamente.
Foi recolhido, as pessoas me ajudaram a levantar e tirei a roupa ali mesmo, claustrofóbico.
Recebi minha grana e entrei no ônibus, querendo somente a minha cama.
Cheguei a fazer outros trabalhos posteriormente com esse grupo, mas nada se comparou sequer a esse primeiro dia.
***
Mytho Leal é autor convidado da Papo de Homem e nos cedeu o prazer de republicar oficialmente esse texto, que veio originalmente de seu blog chamado Você não Acreditaria.
Leia também o aclamado conto Comandante Loureiro, escrito por Mytho e não se esqueçam do Salto Decisivo, outra história real com as origens de nosso homem-dublê.
Além de ter grande talento para a escrita, ele atualmente se encontra perdido na Europa, onde tenta ficar mais rico e atualiza seu blog diariamente.
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