A receita da farofa da tia Conceição é igual doce de vó guardado na geladeira. Passa o tempo e ela fica melhor.

No natal, a casa da tia Regina fica uma bagunça. Primos se amontoam pelos sofás, vendo a vida passar grão por grão, bem devagar, porque não carece sentir pressa depois do lombo, do chester, do peru e do renegado arroz com passas. Quem come uva passa no arroz, meu deus, quem?

A Sophia, dois anos, tá lá, sentadinha e cercada de presentes por todos os lados. Nada parece encantar muito. No mundo de Sophia, com o perdão do trocadilho infame, não tem preocupação com o IPVA, não tem frustração amorosa, não tem Leroy Merlin e nem vontade de emagrecer. O mundo da Sophia é outro. Num baita esforço de se erguer no tapete fofo, como quem tira a Excalibur da pedra, ela olha ao redor tentando identificar os perigos que podem impactar a tão delicada operação.

Eu olho de canto de olho, já derrubado pela segunda rabanada, desnecessária e mortal, e vejo a missão tomando forma. Ela vem caminhando, vez ou outra dando risada por conta das cócegas que a textura do tapete causam no pé descalço. Chega perto e usa meu joelho — que pra ela não é um joelho — como apoio para poder fincar os pezinhos ali, no objetivo de toda aquela missão: meus chinelos. Nada de Hello Kitty, pais e mães do meu Brasil, nada de boneca de Barbie, nada que o Papai Noel tenha trazido há poucas horas atrás, o que encantou mesmo foram aqueles pedaços de borracha já meio gastos.

Chinelos calçados, ela levanta os braços, faz um sonoro “vruuuuuuum”, e cai na gargalhada, daquelas de doer a barriga. Acabo rindo junto, pegando pra mim um pouquinho daquela bobeira boa. Segundos depois, outro “vruuuuum”, outra gargalhada. A Sophia tava rindo da cara de quem precisa pagar o IPVA pra poder gargalhar tranquilo.

chinelo

Tira os chinelos e dá mais alguns passinhos. Eu, limitado, preso na minha bolha pobrezinha, digo: “volta aqui pro carro, Sophia, pra fazer vrum de novo!”. Ela, soberana do próprio império, levanta os braços de novo, sem “carro”, e cala minha boca com outro “vruuuuum”, seguido outra gargalhada, como se me dissesse que é só nesse meu mundo bobo que a coerência é tão importante assim.

* * *

Trabalhei em empresas gigantes por uns bons anos, cercado de gente muito habilidosa para resolver problemas, gerenciar equipes e lidar com conflitos. Desenvolvimentos complexos, envolvendo cifras graúdas, política ardilosa sendo feita de maneira incansável, a fim de manter a roda imensa girando, com todos os prós e contras que cada giro traz.

Cria-se um olhar viciado, meio quadrado, meio cheio de ponta, coerente e seguro demais, que vez ou outra é útil, mas que aprisiona se virar padrão.

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A mudança de ares foi um alento. Parei de frequentar uma multinacional de 200.000 funcionários e passei a frequentar uma casa de três quartos em Perdizes. Com a mudança de ambiente surgem novos gostos, novos livros. A pilha de livros técnicos passou a ser abastecida mais lentamente, outro tipo de literatura ganhou espaço. Montes de contos e crônicas. Que respiro.

Ler um texto escrito de coração é como pedir emprestado para o autor o jeito dele de ver o mundo. Assumimos para nós mesmos que existem outros ângulos, outros jeitos, que as coisas não precisam ser necessariamente daquela forma, velha conhecida. Um pouco de folga na coerência. É como se a Sophia me deixasse usar um pouco daquela liberdadezinha incrível que permite que um chinelo não seja um chinelo.

E é por isso que eu, que me sinto embasbacado com a habilidade que algumas pessoas tem de assistir o mundo de outra forma, fiquei tão feliz quando o Jader Pires, editor do PapodeHomem há quase 3 anos e autor de grande parte dos contos que aparecem por aqui, entrou na sala dizendo: “vou lançar um livro”.

Lançamento do livro do Jader Pires: Ela prefere as uvas verdes

Basta clicar na imagem para ver o convite maior
jader-convite

O projeto ganhou corpo e nome: Ela prefere as uvas verdes.

Para conquistar os leitores, os autores de contos precisam dominar a ciência da estrutura e do estilo, de modo a não inserir em sua narrativa detalhes que não sejam essenciais. É com essa precisão que Jader Pires tem conquistado fãs pela internet e agora publica seus contos no livroEla prefere as uvas verdes.
As treze histórias presentes no livro estão repletas do cotidiano, por onde desfilam personagens das mais variadas origens: um vendedor de crack, um político, um casal de idosos e um mágico de circo. As angústias e alegrias experimentadas por todos esses personagens – e que também são nossas – são expressas em situações fortes e incisivas, mas por vezes bem-humoradas, que aproximam o leitor da trama, sem deixar de fora nenhum detalhe.
Em Ela prefere as uvas verdes, entramos em contato com personagens em momentos surpreendentes de suas vidas. Momentos em que as perdas e os encontros trazem profundas transformações.

O livro já está em pré-venda nos sites da Livraria Saraiva e da Livraria Cultura. Basta saber o que mais te apetece. Tem também um vídeo foi feito pela Monstro Filmes, a edição do livro realizada pela Editora Empírio, e o resultado final, incrível, foi esse:

Link Vimeo

Agora é só aparecer lá.

Eduardo Amuri

Autor do livro <a>Dinheiro Sem Medo</a>. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças