E o Schumacher não volta mais à Fórmula 1. No início da semana passada, logo após um teste em uma Ferrari antiga, ponderou que seu pescoço não resistiria às exigências de um grande prêmio. Seu problema começou após uma queda de moto em fevereiro deste ano, enquanto treinava em um obscuro autódromo espanhol – mais do que braços ou pernas, nenhuma outra parte do corpo é mais exigida de um piloto de carros.

Antes de jogar a toalha, a expectativa de ver o alemão outra vez correndo causou um impacto poucas vezes visto. O GP da Bélgica, um dos menos frequentados por torcedores em todo campeonato, chegou a vender um ingresso por minuto. O GP da Europa, no qual Schumacher reestrearia, não havia vendido metade dos 70 mil lugares a menos de um mês do evento. Bastou o retorno do heptacampeão para mais de dez mil ingressos saírem da bilheteria.

Todo o frisson que o retorno causou mostra o quanto os espectadores ainda consideram Schumacher diferente do resto do grid. Infelizmente para todos, uma dor no pescoço mostrou que ele é tão humano quanto qualquer um, eu ou você.

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Sim, isso vai acontecer.

Pilotos não são super-homens, não voam, não são feitos de aço. Torcedores são historicamente muito relutantes quanto a este fato. Não é raro que a opinião pública atribua poderes sobre-humanos a estes seres, cujo trabalho é rodar numa tonelada de metal e combustível a 300 km/h. Não menos raro é que os ossos deste ofício nos desmintam.

Jim Clark e Ayrton Senna

Dois casos foram particularmente traumáticos: Jim Clark e Ayrton Senna. Ambos pareciam estar um degrau acima, sujeitos a outras leis da física, até acidentes fatais nos jogarem de volta à realidade. Do brasileiro, aquele piloto pródigo em surpreender concorrentes, em fazer com dois dedos curvas que exigiam dos outros uma extrema dificuldade (palavras de outro piloto, Heinz-Harald Frentzen), a gente se lembra melhor. A gente se lembra principalmente da agonia de vê-lo imóvel a bordo do que restou de sua Williams, o capacete amarelo tombado para o lado, a incredulidade que acompanhou o cortejo fúnebre.

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Ayrton Senna, já na Williams-Renault (1994)

Jim Clark talvez seja menos conhecido, mas não era menos surpreendente assisti-lo em ação, nos anos 60. Seu desempenho deixava a todos perplexos. Uma vez completou a primeira volta de uma corrida tão à frente dos demais que acharam, nos boxes, que tinha acontecido um acidente bloqueando a pista atrás dele. O “escocês voador”,como o chamavam, no entanto, não conseguiu contornar seu destino. Morreu num evento menor, uma corrida de Fórmula 2 em Hockenheim.

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Ao contrário dos milhões à frente da televisão que assistiram à batida fatal de Senna, só uns poucos fiscais testemunharam o despiste de Clark. Ainda assim, a comoção foi enorme, dada a dificuldade de entender como aquele fantástico piloto estava tão submetido quanto qualquer outro às leis da vida e da morte.

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Jim Clark, Silverstone, 1967

Depois daquela curva

Clark, ao contrário de Senna, e muito ao contrário dos pilotos de hoje, viveu numa época em que não existia preocupação com a segurança no esporte. Pilotos, dirigentes e torcedores entendiam que, se alguém resolvia correr de carro, sabia a quais riscos estava se expondo: sabia que um segundo de desatenção e seus amigos velariam seu corpo na terça-feira de manhã.

Isso só começou a mudar, timidamente, quando Jackie Stewart, também escocês, se engajou na luta por garantias mínimas de preservação da integridade para si e seus colegas. Ele encerrou a carreira vivo, tricampeão e detentor de recordes, mas era pouco mais que uma jovem promessa quando começou a exigir melhores condições de segurança, no GP da Bélgica de 1966. Ele abandonou a corrida na primeira volta: preso nos destroços de sua BRM, encharcado de gasolina.

Spa-Francochamps era, naquela época, um anel de 14 km de grandes retas e curvas rápidas. Tinha algo em comum com a pista atual: poderia estar chovendo litros em um trecho e completamente seco em outro. Foi assim quando deram a largada para o GP daquele ano. A chuva começou na curva Burnenville, onde quatro carros rodaram – Jo Bonnier só não caiu em um abismo graças ao peso de seu motor.

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Carro de Jo Bonnier durante o GP da Bélgica de 1966, o mesmo em que Stewart se descobriu mortal

Stewart aquaplanou na Masta e passou 25 minutos sendo resgatado por seus colegas Graham Hill e Bob Bondurant, que rodaram no mesmo local. Nesse espaço de tempo, se deu conta de que era um ser humano, de carne e osso, perfeitamente apto a morrer. A partir de então, passou a exigir guard-rails nas bordas do traçado, pequenas áreas de escape e atendimento médico profissional em todos os circuitos.

Curiosamente, ainda que tenha obtido tanto ou mais sucesso que Clark na carreira, Stewart nunca foi tão aclamado. Talvez porque os torcedores prefiram super-homens. Ou, pelo menos, aqueles que arriscam mais o pescoço.

Daniel Médici

<strong>Daniel Médici</strong> é estudante de jornalismo e editor do blog <a>Cadernos do Automobilismo</a>."