A teoria do bem estar por meio do capitalismo dita que as coisas melhorarão com a pressão dos agentes uns sobre os outros. Isto é, a crença é que com um processo semelhante ao da seleção natural, a satisfação média tende a melhorar (a ideologia algumas vezes prega que se trata do mesmo processo, porém, na medida em que existe a possibilidade de agentes super-racionais, e o “livre mercado” precise ser protegido ou garantido, a versão ideológica se revela um simulacro).

A melhoria por meio da pressão competitiva dos agentes, de uma forma geral, é duvidosa – embora ela até ocorra de forma bem clara nos aspectos mais próprios do capitalismo, como bens de consumo. Além destes, ninguém nega que o capitalismo produza alguns benefícios: o que normalmente se discute é a que preço, em termos ambientais, por exemplo. Mas fora dessa discussão, a televisão que você compra hoje é muito melhor e mais barata que a televisão que você comprava 30 anos atrás, isso é inegável. Temos hoje ferramentas e brinquedos melhores.

Toma. Pega. Leva.

Mas há complicadores mesmo dentro desse nicho, que seria a vitrine maior do capitalismo. Na medida em que passamos a comprar ideias (na forma de inovações), design, e estilos de vida associados a um produto, não compramos mais um objeto discreto. Na verdade o que fazemos é entrar em contrato com uma empresa, pelo tempo que usamos aquele produto – até o trocarmos por um melhor, da mesma empresa ou do concorrente. A televisão é um exemplo interessante, porque ainda é uma tecnologia relativamente estável: a maioria das pessoas que trocava de TV a cada 20 ou 30 anos, agora passa a trocar de TV a cada 10 anos, e nos próximos anos, se 4k e outras inovações realmente seduzirem os consumidores – e quando baixarem de preço, principalmente telas maiores – é possível que o tempo de troca chegue a 5 anos, isso claro, se o apocalipse zumbi não vier antes. Mas mesmo nesse caso, nunca será semelhante ao de um smartphone, por exemplo, que dura no máximo três anos, e que a maioria das pessoas troca todo ano.

Quando se fala em algo “durar” em termos de produtos de consumo, particularmente eletrônicos, hoje não se fala tanto do produto estragar: o aparelho fica obsoleto principalmente pela aparência, e em alguma medida – cada vez mais imperceptível, a cada geração que passa – em termos de utilidade. Ele se desgasta (arranha, por exemplo), fica lento, e faz um pouquinho menos que o novo, de um jeito que conseguem fazer parecer datado – mas a tara do unboxing e a emoção barata da novidade nos faz investir na mudança. Modo geral, quem é mais consciente tenta se disciplinar para não dar um upgrade fútil, por fetiche, mas se está sobrando uma graninha, a tentação é grande.

Mas fora a obsolescência programada, e toda a tragédia ambiental e em termos de trabalho escravo que ela produz, há outra forma de distorção nefasta da promessa capitalista de melhoria constante. Na medida em que os produtos são menos estáveis, e ficam mais descartáveis (ainda que durem mais, no sentido de não estragarem tanto), e na medida que pagamos mais por ideias e design, a “coisa em si”, aquele tijolinho de plástico e vidro, se torna mais uma símbolo de posse do que algo que é verdadeiramente nosso.

Isso se espelha tanto na dificuldade, ou impossibilidade prática, de alguém fazer um conserto ou uma modificação física no dispositivo, quanto nas tentativas (por enquanto relativamente infrutíferas) de legislar intervenções em hardware e software.

Explico. Quando as televisões eram valvuladas – e elas invariavelmente davam problema, como cada válvula é como uma lâmpada incandescente, e elas queimavam facilmente – você pegava seu mastodonte (que incluía um canhão de elétrons, quase um acelerador de partículas!), botava no carro, e levava num tiozinho que tinha uma loja no seu bairro, e ele, com uma formação muito básica, podia abrir a TV, olhar o que estava (muitas vezes visivelmente) queimado, e pedir uma peça nova. Num determinado momento, nos anos 80, se você queria incluir um conector RGB na sua televisão transistorizada – para ligar um computador da época, por exemplo – bastava levar no tiozinho. Ele incluía um conector para você, por um preço módico, e assim você não precisava comprar uma TV nova com essa característica – se é que ela existia no isolado mercado nacional.

Não vou dourar essa pílula: consertar um equipamento sempre foi uma aposta duvidosa. No mais das vezes, tínhamos isso como uma prorrogação incerta para a compra de um substituto – já que os equipamentos algumas vezes voltavam várias vezes à oficina, e a situação toda muitas vezes era tão difícil e complicada quanto hoje ligar para algum atendimento por telefone.

Na medida em que os transístores viraram circuitos integrados, algumas vezes o tiozinho trocava o circuito – e isso requeria, em alguns casos, uma boa habilidade na solda – já que esses circuitos têm muitas perninhas. Finalmente chegou um ponto em que já se pedia uma placa de circuito inteira, na medida em que o trabalho manual desvalorizava perante os preços cada vez mais baixos dos circuitos produzidos em massa. Daí o trabalho do tiozinho ficou obsoleto, exceto, é claro, para quem tem medo de abrir o próprio aparelho e pedir peças pelo correio.

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Aqueles entre nós que tinham mais coragem de fuçar nas coisas, e a partir do momento que a informação e a possibilidade de encomendar peças ficou muito mais fácil com a internet, simplesmente olhava um tutorial e era isso.

Porém a estratégia de “assinatura” das empresas, por meio daquela pressão natural do capitalismo, acabou encerrando os produtos em parafusos proprietários, colas invioláveis, peças nunca encontráveis… sem falar nos contratos específicos que nos impedem de mexer com o software, e em invólucros que envelhecem exatamente de forma que embora sigamos respeitando o velho, e a marca de forma geral (que é o que importa para a mente corporativa), ansiemos muito pelo novo. Isto é, os aparelhos funcionam, mas sua aparência decai pela escolha dos materiais e pela própria natureza efêmera da moda. Pode estar funcionando, mas queremos outro. Se estragar, tanto melhor, é uma boa desculpa para pisotearmos nossos ideais ambientalistas.

10 modelos em 8 anos de existência. E muita gente teve todos os modelos nas mãos

Mas as empresas não têm incentivos para facilitar nada disso. Se elas podem, usam um cabo proprietário que não lhe dá nenhuma vantagem, senão pagar mais caro caso você o perca.

Ok, negócios são negócios, você pode pensar. Mas há duas ramificações nefastas nessa tendência de fechar os produtos e eliminar qualquer chance de a pessoa intervir sobre o objeto ou programa que ela supostamente comprou. Metaforicamente, podemos falar, mesmo em termos humanos, nessas duas ramificações, em termos de hardware e software.

No nível do software, nossas mentes ficam fechadas a ecossistemas de empresas: se uma mesma ação pode ter duas formas relativamente equivalentes de executar, empresas concorrentes serão incentivadas a desenhar suas interações de acordo que não só a sua ação seja a melhor (o que é o impulso bom da “adaptação natural” imitada pelo capitalismo), mas que sua ação torne o ato de aprender a do concorrente frustrante. Não tenha duvida de que isso é estudado em cada uma das interações desenhadas por empresas de software. Em outras palavras, há uma mineração de nossos hábitos mentais, nossa dificuldade natural de lidar com o novo se torna apenas mais um “recurso natural” a ser explorado.

Isso é semelhante ao problema atual com patentes farmacêuticas, que incentivam as empresas não a gastar dinheiro pesquisando novos medicamentos, mas em encontrar um medicamento que faça a mesma coisa sem violar a patente do concorrente. Quem ganha com isso? Certamente não a saúde das pessoas, que é, no fundo, o que as patentes farmacêuticas, como contrato social, deveriam garantir.

Mas em termos de software e nossas “curvas de aprendizado”, isso se ramifica, uma vez que novas iterações de um mesmo produto podem preferir manter certas características, por mais que estejam superadas, para não ofender sua base de usuários, e mantê-los fiéis. Aprender um ecossistema digital é desenvolver dificuldade em outro: e não só cognitiva, mas também a pressão de evitar transferir os conteúdos e interconexões para outro “guardião”, na forma de outra empresa. É como duas cepas de células se adaptando para um ambiente hostil, uma excretando toxinas para a outra. Só que quem “ganha” com isso não é o hospedeiro, nós, mas um dos dois times que estão em guerra pelo loteamento da mente.

Quanto ao hardware, a mesma coisa, só que isso vai se tornar mais relevante quando intervenções cibernéticas forem mais íntimas: quando o nervo ótico de alguém for substituído por um fabricado pela empresa X, teremos todos os problemas de atualização de software, e contratos sobre não intervenção no funcionamento daquele item. Em outras palavras, o braço ou pulmão artificiais, biológicos ou um tanto mecânicos, que forem fabricados por uma empresa, serão também apenas uma “assinatura”, nosso para usufruto, mas não para modificação. E se você quer que a qualidade de sua visão melhore, você poderá ser forçado a pagar pela melhoria, mesmo que ela seja apenas um update de firmware.

iEye

Quando o movimento punk surgiu nos anos 70, seu aspecto mais positivo era o “faça você mesmo”, o cara pegar a guitarra e, mesmo sem saber tocar quase nada, fazer seu som e deixar sua expressão. A ficção científica retomou o tema nos anos 90, com o “ciberpunk”, mas o futuro parece ainda mais despótico que o proletariado digital descrito ali, com seus correspondentes pós-modernos da tatuagem, suas modificações corporais feitas por transgenia.

Na medida em que as corporações assumem nossos olhos e nossas mentes, percebemos que cada passo legislativo na direção de desregular a atividade e idolatrar a onírica autorregulação do mercado como valor ético e de liberdade, desconstruiremos o humano. E não porque ele passará a ser parte máquina, ou depender de máquinas, mas porque semideuses inventados e (pelo menos por agora) determinados por algoritmos – as corporações – seguindo o inexorável processo de adaptação, vão nos deixar ultrapassados.

Isso não precisa ser uma “Skynet”, não é necessariamente um ser consciente – ou pelo menos ainda não é. Já está em processo há 200 anos. É apenas a legislação humana, por impulsos ideológicos equivocados, ordenando o comportamento humano de uma forma não humanamente sustentável.

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em <a>tzal.org</a>."