1. A batalha das hashtags
#VaiTerCopa
#NãoVaiTerCopaPensando bem, não vai ter Copa.
Vai, sim.
Ou não.
Essa discussão sobre os protestos durante a Copa não parece um debate, mas uma briga entre crianças birrentas, repetindo slogans manipulados por políticos oportunistas tanto da oposição como da situação. É algo que nos impede, enquanto nação, de aprender uma grande e decisiva lição sobre quem somos, a partir de um fato que deveria ser, em outras circunstâncias, uma coisa banal, mero evento esportivo.
Isso porque, graças à Copa do Mundo, o Brasil poderia finalmente perceber a existência de sua ferida narcísica, e desenvolver um determinado atributo que toda nação precisa ter para sair da infância.
Do que estou falando? Vou explicar tudo. Mas, antes, preciso contar sobre a mancha na coxa de uma mulher.
2. A Coxa e a Copa
Anos atrás, uma amiga minha resolveu tirar a pequena mancha que havia em sua coxa através de uma cirurgia. Apesar de a mancha ser imperceptível e quase ninguém reparar nela, foram inúteis os esforços dos amigos e familiares, que tentaram convencê-la a não se submeter a uma intervenção cirúrgica por algo tão insignificante.
Para minha amiga, não era algo insignificante. Em sua visão distorcida sobre si, aquela mancha parecia enorme e chamava a atenção de todos.
Após a cirurgia, a mancha sumiu. Porém, em seu lugar, ficou uma cicatriz de maiores dimensões e mais visível. Um novo inferno tomou o lugar do anterior e, após semanas de crise emocional, um segundo procedimento deu fim à cicatriz.
Mas, após o novo procedimento, toda a pele na região próxima ao lugar em que antes estava a cicatriz ficou com coloração mais clara. Não deixava de ser, em sua visão, uma nova mancha – e maior.
E o que isso tem a ver com a Copa do Mundo?
Bom, concordo com aqueles para quem o Brasil não deveria ter se candidatado a sediar a copa, pois é um evento de benefícios duvidosos, que serve apenas para engordar as contas bancárias de cartolas da Fifa, empreiteiros filhas da puta e políticos corruptos, além de ser meio constrangedor realizarmos uma celebração de proporções monumentais em um país no qual 20 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza.
A Copa, em suma, foi um equívoco friamente calculado por quem dela irá se beneficiar – políticos, empreiteiros e cartolas. Mas, assim como a mancha naquela coxa, é um erro que não devemos tentar corrigir impedindo ou atrapalhando sua realização. Pois, na tentativa de corrigir esse erro, transformaremos algo que é uma pequena e passageira mancha em uma grande cicatriz – ou, até, em uma mancha ainda maior.
Entre os que são contra a Copa e querem que tudo dê errado pois tocar fogo na coisa toda é a solução e aqueles que são a favor da Copa e querem que seja um sucesso pois o Brasil é o país do futebol e o Galvão Bueno é o gênio da raça, há uma terceira via: aqueles que são, por princípio, contra a Copa mas que, tendo em vista a irreversibilidade da situação, acham mais pragmático aceitar que o evento ocorra. Os prejuízos, inclusive para a democracia, decorrentes de uma possível batalha campal entre policiais e manifestantes, parecem ser muito maiores.
Pior do que termos prejuízo com a roubalheira e o oportunismo, seria termos prejuízo redobrado com o fracasso da Copa – não apenas no que diz respeito à compensação financeira, ainda que parcial, dos estratosféricos investimentos, mas principalmente em relação à estabilidade de nossas frágeis instituições democráticas.
Então não devemos fazer nada? Devemos sim. Precisamos, com humildade, aprender a grande e definitiva lição que essa história toda pode nos propiciar. Pois a Copa é apenas a mancha aparente, que pode nos dar a oportunidade de reconhecermos nossa ferida profunda.
3. Nossa ferida em comum
Toda a aventura da minha amiga revelou uma grande mancha, uma grande ferida, mas ela foi incapaz de percebê-la. Ao contrário do que imaginava, não se tratava daquela em sua coxa. A mancha estava em sua mente. Como muitos de nós, ela não possuía autoconsciência e era incapaz de perceber a exata dimensão de suas qualidades e de seus defeitos, transitando entre momentos de excessiva vaidade e de exagerada autocrítica.
Isso não é muito diferente do que temos no Brasil. Misturando a euforia do Carnaval com o horror pelas chacinas e linchamentos que ocorrem esporadicamente, transitamos entre a ideia de que estamos no deslumbrante “país do futuro” e aquele complexo de inferioridade que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de viralata”. A nossa falta de percepção sobre a exata dimensão de nossas virtudes e deficiências faz com que acreditemos na enganosa ideia de que somos uma nação pacífica, varrendo para baixo do tapete todos os cadáveres da nossa história, e que nos iludamos sobre sermos um povo gentil, cordial – um delírio oportunista que Sérgio Buarque de Holanda já se encarregou de desmascarar.
Aquela minha amiga, tentando eliminar uma insignificante mancha em seu corpo, sem querer tornou evidente a grande ferida que havia em suas emoções. E ela poderia ter aproveitado a oportunidade da ferida que se revelava fisicamente para aprender um bocado a respeito de si. Quis, porém, insistir no erro, e apenas perpetuou seu tormento, convertendo a ferida em uma nova mancha.
O conceito de ferida narcísica não possui uma definição formal, mas uma delas a descreve como o trauma resultante de um golpe na excessiva autoestima que um indivíduo nutre: ele vê a si mesmo como alguém extraordinário (como o Narciso da mitologia, herói orgulhoso e vaidoso) mas alguma coisa desmente, de forma dolorosa, essa ilusão.
E, da ferida, podem resultar dois caminhos: a cura ou a infecção. A cura exige que seu portador reconheça a ferida e, através dela (como se ela própria fosse não um mal, mas uma oportunidade), obtenha adequada autoconsciência de suas qualidades e deficiências, para que possa construir uma vida de lúcida e responsável.
Já a infecção ocorre quando o indivíduo se recusa a reconhecer a existência da ferida. Nesse caso, por mais que tente escondê-la de si próprio, ela será perceptível pelo menos aos outros, através dos erros que ele cometerá ao se proteger através de ilusões de grandeza, ou, paradoxalmente, de um discurso excessivamente autocrítico. Mesmo um evento que é banal para as outras pessoas pode ser problemático para esse indivíduo infeccionado, pois até um fato ordinário, tal como um evento esportivo, pode revelar a relação conflitiva que essa pessoa tem com sua própria condição pessoal.
De tudo isso, fica bem claro que, no caso de infecção, quando o indivíduo é incapaz de reconhecer a ferida que precisa curar, a melhor maneira para ele compreender a existência dela é perguntando aos outros a respeito de seu estado, e torcendo para que sejam duramente sinceros – por mais amarga que seja a verdade.
E, no caso do Brasil, os nossos “outros” são os povos estrangeiros, justo aqueles que estão para nos visitar entre 12 de junho e 13 de julho. Isso implica que devemos observar tudo o que dirão, lá fora, a nosso respeito durante a Copa.
E você tem algum problema com isso?
4. O inferno não são os outros
Sempre que algum estrangeiro escreve sobre suas impressões a respeito de nosso país, como recentemente ocorreu com um americano e um francês, muitos brasileiros reagem com um discurso que é mais ou menos assim: “quem é ele para falar mal do Brasil? não admito, pois o país dele tem os problemas X e Y! Além disso, seu país é o culpado por muitos problemas do terceiro mundo!”
Essa postura é um bocado infantil, de alguém que fica melindrado e se recusa a ver o fundo de verdade que pode haver nas críticas alheias. Em resumo, o importante é perguntarmos: “Abstraindo se os estrangeiros tem ou não autoridade para falar mal do Brasil, suas críticas são ou não procedentes? E, se forem, o que podemos fazer a respeito disso?”
Em suma, o olhar dos estrangeiros, uma vez eliminadas as distorções dos preconceitos deles e o embaçamento de nosso orgulho, pode ser uma forma de espelho, útil para observarmos aquilo que está em nós mas que se encontra perto demais para que possamos ver com nossos próprios olhos.
Falando sobre os estrangeiros, anos atrás um dos mais interessantes e sinceros entre eles esteve por aqui. Michael Palin é um escritor e comediante britânico. Membro do mitológico Monty Python, acompanhei certa vez todos os episódios de um documentário em série que ele fez para a BBC, dando a volta ao mundo em 80 dias. No final do documentário, ele era muito crítico a respeito de seu próprio país, de forma que podemos considerá-lo um sujeito razoavelmente imparcial.
Pois Michael Palin, em 2012, apresentou na BBC um documentário sobre o Brasil. O que nos importa, porém, não é o que está no documentário, mas algo que ele falou em uma entrevista após as gravações. Michael Palin conheceu várias culturas ao redor do mundo e ele disse que cada povo tem seu vocabulário próprio, no qual faltam algumas palavras e existem outras que não há no vocabulário dos outros povos.
Pois, em relação ao Brasil, Palin disse que falta uma palavra em nosso vocabulário. E ela é “autoconsciência”.
E é verdade. Durante cinco séculos de história, revelamos incapacidade de percebermos todo o nosso potencial. O falecido jornalista Paulo Francis, criticado por muitos, teve razão quando disse que nossos vizinhos sul-americanos até hoje riem da nossa cara, por não termos aproveitado nossas riquezas e tamanho para nos tornarmos uma potência mundial.
Mas, ainda mais importante que isso, nós ainda não adquirimos a autoconsciência necessária para nos darmos conta de que nossas vidas dependem uma das outras, de que apenas nosso compromisso coletivo com o respeito às leis e com a observância das regras mínimas de civilidade em relação aos demais brasileiros é que nos separa da estarrecedora barbárie, daquela sociedade infernal e caótica na qual centenas de adolescentes podem ser mortos por imprudência e uma dona de casa é brutalmente assassinada por mera selvageria.
5. A proposta
Nossa falta de autoconsciência tem um preço inadmissível: o custo de vidas humanas. Nossa incapacidade de reconhecermos nossas falhas e de dimensionarmos nosso potencial cobra um valor realmente monetário: os milhões que vertem para empresários e políticos corruptos a cada negociata escusa. Nossa incapacidade de, civilizadamente e com metódica determinação (sem revoluções rocambolescas, sem atos gradiloquentes e vazios), assumirmos pessoalmente a responsabilidade cotidiana, enquanto cidadãos, de alterarmos esse cenário revela a exata natureza das intenções por trás dos protestos contra a Copa: em parte ingenuidade imbuída de nobres mas imaturas aspirações, em parte esperteza política de quem quer obter dividendos eleitoreiros.
Uma coisa é certa: quaisquer que sejam as soluções possíveis, nenhuma delas é instantânea. Não há panaceia. É preciso, em primeiro lugar, reconhecer e analisar a mancha até agora oculta, que está no âmago da sociedade brasileira. E a Copa, evento que em outros países não passaria de um festejo banal, pode ser, para nós, uma preciosa oportunidade de observarmos, sucintamente e pela primeira vez, essa mancha.
Portanto, este artigo não termina aqui.
Proponho que, após a Copa, retornemos para um levantamento de tudo o que ocorreu, de cada fato relevante que foi documentado pela nossa imprensa e, principalmente, pela mídia estrangeira, em uma análise que abranja desde o início dos trabalhos preparatórios para a Copa até sua conclusão. Com essas informações, poderemos fazer uma análise de algo que precede a Copa e tem uma origem bem mais profunda: seremos capazes de examinar a forma e natureza de nossa ferida narcísica.
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