É sempre agradável poder falar desse negoço, poesia. Agnaldo Farias me saiu um dia com essa divisão do globo: há os que já foram avisados e, do outro lado do rio, os desavisados. É função dos avisados avisar aos desavisados. Nesse desaviso inerente à nossa condição, caminharemos. Eu, da minha jangada, vim avisar sobre esse negoço, poesia; a qual, falando de rio, não deixa de passar como aquela tal terceira margem, lugar onde tempo, espaço e notificações estão suspensos.

Suspensão que se conecta com o prazer do texto. As possibilidades de prazer que deixamos escapar. A entrega que Arnaldo Antunes sugere: “um livro de poesia não se lê apenas. Com um livro de poesia se convive”. Acionar outro tipo de vínculo, vocês verão Cacaso e Manoel de Barros aqui; voar no terreno onde as palavras reencontrem um ritmo orgânico. Modo avião.

Em um tempo de surdez seletiva e rolamento de barra, a escolha do silêncio e da atenção ao texto. Nesta de fazer todo dia tudo sempre igual o poema se interpõe, fere, provoca (e você achando que a pedra no caminho era só uma piada).

Octavio Paz relê a Poética de Aristóteles para costurar o seguinte ponto: “o poeta convoca um passado que é um futuro”. Novamente a tal suspensão, a poesia como agente de outra dimensão – a mesma do “era uma vez”, do “num reino muito distante”, do “aguarde na linha, vamos estar transferindo o senhor”.

Em um cotidiano que nos atravessa com falsas urgências, Eucanaã Ferraz: a desautomatização instigada pela poesia, a conversão do impensado em absurdo. Na ânsia das diferenças sombreadas, Felipe Nepomuceno. O poeta destrincha um presente que pode ser outro futuro.

Primei por escolher poemas curtos, um bate-volta na terceira margem. Entre surpresa, agonia e desmantelo, que cada poema se fixe com um convite ao deleite, aos deslocamentos, à não simplificação da poesia. Para uma expansão do contato, optei por não repetir poetas. A não ser no caso de Wislawa Szymborska, que abre e encerra esta humilde seleção. A polonesa está em destaque pela tal dimensão ética que atravessa (mas não encerra) a poesia. Ela fecha o baú com o único poema longo, “Possibilidades”, ao qual retorno em muito dos fluxos que surgem aqui, no PapodeHomem.

Explicar?

Sei não. A não ser que apele pra Mondrian: em suas composições, o neerlandês prima pelo equilíbrio entre linhas e formas, entre as cores primárias e o branco. Preste atenção por um tempo, que você nota que o vermelho, o azul e o amarelo estão postos de modo complementar. Assim como o branco, que ocupa mais espaço para compartilhar do mesmo protagonismo.

O que é que tem a ver? Olha as linhas. As individualidades não se misturam. Não se tocam. Cada uma ocupa seu espaço determinado. É isso que compõe um todo harmônico. Cada um com a sua utopia. Este é Mondrian. Wislawa, do seu jeito, nos traz isso: a margem de possibilidades que a condição humana carrega.

A poesia, gente boa, faz essa margem engolir arranha-céu.

Sem mais, os tais convites:

1. Vietnã, de Wislawa Szymborska

Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Nao sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quanto está aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Esses são teus filhos? – São.

(em Poemas, Companhia das Letras)

2. O Seio, de José Craveirinha

Mamana
amamentando
vale a pena sobreviver
ao holocausto da horda?

Ela
a olhar
os cães devorando
sua carne do seio amputado?

(em Antologia Poética, editora UFMG)

3. Anedota Búlgara, de Carlos Drummond de Andrade

era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.

(em Alguma Poesia, Companhia das Letras)

4. Cidade do México, de Felipe Nepomuceno

Crianças comem alegrias
e respiram fumaça
pensando que estão mais perto do céu.

Todo mês tem festa e riso, morte.
Derrotados guerreiros astecas
bebem tequila,
resistindo ao tempo e à distância.

Existem muitos mexicanos
espalhados pelo mundo.

(em Mapoteca, Cosac Naify)

5. Havaianos, de Marcelo Yuka

sempre gostei dos havaianos
eles são negros meio índios
são índios meio negros
inventaram o surfe
e ainda por cima
são americanos que na real
apesar do ritual ocidental
só são americanos quando morrem

(em Astronautas Daqui, LeYa)

6. Competições, de Alberto da Cunha e Melo

Competir por um lugar
no ônibus,
na fábrica,
no coração de Berenice.
Competir com os hereges por um lugar no céu,
quando os próprios hereges
são menos verossímeis
do que o céu
que tentam destruir.
Competir com os amigos
por um lugar
na sua lembrança,
quando os amigos
só se lembram de competir.

(em O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos, A Girafa)

7. Você me feriu, de Karina Buhr

Na delegacia nada a registrar
nenhum arranhão, nenhuma roncha no corpo.

O arranhão e o soco foram dentro.

(em Desperdiçando Rima, Rocco)

8. umi hotaru, de Jordi Mas

as levíssimas baleias
são as rainhas das águas
pois despacham mensagens com golfinhos,
executam sentenças com tubarões,
e outorgam todos seus dons
com vaga-lumes do mar
que, ao regressarem, consumidos,
já plâncton opaco,
são seu alimento

(em Sema, Tres I Quatre)

9. Vontade, de Laura Liuzzi

Entrar em casa sem que a porta
rangesse, sem que o cachorro
da vizinha farejasse minha vinda
sem que o sofá conservasse as
formas do meu corpo, sem que
eu precisasse tomar aquele copo
de água que toca o azulejo e emite
um som rouco, sem que houvesse
corpo. Entrar em casa como
a música entra nos ouvidos.

(em Desalinho, Cosac Naify)

10. eu todo mundo, de Arnaldo Antunes

eu não queria que todo mundo pensasse que eu
era o que eu não sabia que todo mundo queria
que eu pensasse que todo mundo sabia que eu
era o que eu não sabia que eu queria era que
todo mundo pensasse que eu era todo mundo

(em agora aqui ninguém precisa de si, Companhia das Letras)

11. Projeto de Vida, de Victor Rodrigues

buscar ascensão social
chegar ao topo
se jogar

(em Versos Para Aumentar o Mundo, edição do autor)

12. Rabo de Baleia, de Alice Sant’anna

um enorme rabo de baleia
cruzaria a sala nesse momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
é abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela

Leia também  Libertadores e a nossa paixão maluca pelas coisas que amamos | Mais que um jogo #20

(em Rabo de Baleia, Cosac Naify)

13. Ela, de Alejandra Pizarnik

ela se desnuda no paraíso
de sua memória
ele desconhece o feroz destino
de suas visões
ela tem medo de não saber nomear
o que não existe

(em Poesia Completa, Lumen)

14. Caindo na pândega, de Waly Salomão

Caindo aos pedaços
De desastre em desastre
Minha cara virou
Minha cara virou
Minha cara virou um caco
Colei tudo passei goma
Fiz um disfarce
Com o resto do trapo
Não posso rir alto
Levantar o braço
Descola tudo
Solta a goma
É UM FRACASSO

(em Poesia Total, Companhia das Letras)

“Moça de olhos azuis”, Amadeo Modigliani, 1917

15. Já perceberam, de Miró

Já perceberam como tem pontas de
cigarro em pontos de ônibus?
Tem uma tese de um amigo que diz:
Que as empresas de ônibus são
responsáveis por 5% dos cânceres de
pulmão.
Curioso perguntei, como assim?
É que os ônibus demoram.

(em Revista Zena, publicação digital)

16. Rápido e Rasteiro, de Chacal

Vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.

aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida.

(em Muito Prazer, 7Letras)

17. Poeminha de relativa esperança, de Millôr Fernandes

Basta o leitor do futuro
Ser boçal
Para que eu fique
Imortal

(em Essa cara não me é estranha e outros poemas, Companhia das Letras)

18. Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada, de Manoel de Barros

V

Escrever nem uma coisa
Nem outra –
A fim de dizer todas –
Ou, pelo menos, nenhumas.

Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

(em Poesia Completa, LeYa)

19. epitáfio para o corpo, de Paulo Leminski

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.

(em Toda Poesia, Companhia das Letras)

20. Vida e Obra, de Cacaso

Você sabe o que Kant dizia?
Que se tudo desse certo no meio também
daria no fim dependendo da ideia que se
Fizesse de começo

E depois – para ilustrar – saiu dançando um
Foxtrote

(em Lero Lero, Cosac Naify)
 

21. felizes são as pessoas na foto, de Gregório Duvivier

felizes são as pessoas na foto
de escola da minha avó
que não sabem ainda
que vão ser avós

e isso se tudo der certo
e elas não morrerem antes.

(em Ligue os Pontos, Companhia das Letras)

22. A casa fala como rádio, de Mariano Marovatto

A casa fala como rádio
amador estala e exige atenção
como o recém-nascido em silêncio
escuta. Não se deve responder
debaixo do chuveiro. Não se deve
cobrir os ouvidos com água. Repare
bem: as gotas respondem sobre o
corpo. Cheira mal a carne dura,
quando o sol entra nas veias de
suas madeiras. Temporais que
atravessam as janelas. Num anoitecer
sem avisos, como nos contos de Ellery
Queen, ou como nos verões mais largos,
a casa sopra; nunca sopram a casa

(em CASA, 7Letras)

23. Canto VII, Do Desejo, de Hilda Hilst

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascerem
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

(em Do Desejo, Editora Globo)

24. Um Coração Que Mora Dentro Do Olho Do Jaguar, de Matilde Campilho

O Verão, rapazes – como disse C. Adams –
implica uma insistência nos mergulhos
e uma desistência breve das respostas.
Importante é passar as mãos pelas escarpas,
afagar o pescoço das andorinhas do mar,
verificar o oxigênio nos tubinhos de plástico
que ajuda a respirar na cala azul turquesa
e permitir que o Senhor ressuscite o sangue
dos espadartes a todas as manhãs de 29ºC.
Estas são as tarefas que devem ser realizadas

e – como disse Adams – bom mesmo é chegar
ao fim da estação sem nenhuma resposta.

(em Jóquei, editora 34)

25. Oboé, de Eucanaã Ferraz

É preciso nomeá-lo assim, à distância; o indivíduo;
que, recluso, pouco a pouco se faz surdo e pode,
por isso, baixar em seu aparelho o volume
do mundo e reduzi-lo, se quiser, à mímica
sem sentido que lhe parece ser o sentido de tudo;
o indivíduo mouco transmuta sua vida em rádio;
e mais, dizem que é doido quando, se não bastasse,
está constantemente assim, mudo, sem marcas
de dor ou gozo em seu rosto; por fim, a terra
é de cegos mas ele traz os dois olhos bem abertos.

(em Sentimental, Companhia das Letras)

26. Possibilidades, de Wislawa Szymborska

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulhas e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão.

(em Poemas, Companhia das Letras)

 

Junta aí, nos comentários, com o que faz seu relógio derreter. E só pra não deixar o título no ar, explico: tem a ver com outro quadro famosão.

“A persistência da memória”, de Salvador Dalí

Se liga aí como tá tudo claro lá atrás mas uma sombra sinistra vem chegando, criando outro lugar na tela, lugar onde o tempo para, onde os relógios se dissolvem. É mais ou menos isso. Encontrar um lugar, através da poesia, das artes visuais, do futebol de domingo, onde o tempo pare. Vire outro.

Peo Oliveira

Nascido e criado em Salvador. Circula por aí falando de Garrincha e Caetano. Uma vez ou outra aparece no <a>Facebook</a>."