Homem não chora. Homem também chora.
Esse duelo talvez seja tão antigo quanto aquele do ovo e da galinha, mas de alguma forma ele persiste em uma batalha eterna. De vez em quando homem chora, sim. Mas pode? Lá no primeiro episódio do podcast Homem Também Chora, eu e meu parceiro de programa Lucas Machado nos debruçamos sobre esse tema pensando: quando é que um homem pode chorar e o que isso revela?
Dessa discussão, que teve muitas trocas com ouvintes, surgiu uma conversa com o Guilherme pelo Instagram e o convite para essa lista aqui.
São 26 choros selecionados de maneira completamente arbitrária. Em nossa visão, esses são choros icônicos que ajudarão a responder às perguntas ali de cima.
Os 26 choros estão categorizados em alguns temas que refletem quando o homem "pode" chorar – e quando ele chora mesmo “sem permissão”, porque sim. É natural que existam mais temas e mais choros, então, a conversa se estende nos comentários, beleza?
Choro da Vitória
“O choro é válido no momento da comemoração. Fora isso, não me parece ser algo saudável”.
Essa frase é de um radialista entrevistado pelo jornal “O Estado de São Paulo”, após o fatídico choro do zagueiro Thiago Silva na Copa do Mundo de 2014.
A gente vai chegar nesse aí, mas primeiro vamos olhar para a frase.
Ela já revela uma visão clara que temos no senso-comum. Homem pode chorar só quando ganha. Esse é um choro associado a uma das poucas emoções permitidas ao homem: a euforia.
1. Rubinho
É exatamente o caso do piloto Rubens Barrichello. Nessa foto, ele está no lugar mais alto do pódio pela primeira vez na carreira. Rubinho é uma das figuras mais “memetizadas” do imaginário popular brasileiro, desde muito antes de memes serem o que são hoje. Sua primeira vitória representou a descarga de tanta coisa, para ele e para uma torcida carente de vitórias na Fórmula 1 desde Ayrton Senna, que esse choro aí foi legitimado. Chora, Rubinho!
2. Pelé
Quando a vitória vem acompanhada da juventude, aí mesmo é que pode chorar, rapaz. Na foto está Pelé, com 17 anos, abraçado por Gilmar e mais companheiros de seleção na comemoração do título da Copa do Mundo de 58. Essa conquista veio depois da tragédia na final da Copa de 50, depois de Nelson Rodrigues falar do complexo de vira-lata brasileiro.
É a vida de um menino negro da baixada santista se misturando ao sentimento de um país inteiro. Tal soma coloca esse choro como um dos mais legítimos choros masculinos da história desse Brasil.
3. À Procura da Felicidade
A vitória não existe só no esporte, não é mesmo? Eu pensei em chamar esse de choro da felicidade, mas o homem, por padrão, não chora feliz em um dia de céu azul, sentado no banco da praça, só de ver crianças brincando ao seu redor em um dia sem notícias de crise política.
É preciso ter um grande evento. Algo que desperte a emoção da euforia, um gatilho poderoso. É assim no filme À Procura da Felicidade. Chris, o personagem de Will Smith, chegou ao fundo do poço e nós acompanhamos isso. Até que, em uma jornada épica, ele consegue seu objetivo. É dessa cena que me lembro em momentos de felicidade pura em minha vida. Em como Chris sai do escritório para a rua, indo ao encontro de seu filho, só para compartilhar aquele momento.
No entanto, o que mais me comove nessa cena é como as lágrimas chegam aos olhos de Will Smith, mas não caem. Mesmo nesse momento, Chris segura o choro, ainda que inconscientemente. Mesmo em um momento onde o choro seria legítimo, aceito, o instinto é de segurá-lo se possível.
Acho que com essa sacada a gente precisa entrar em outra categoria.
Choro da Crise Interna
Vimos três casos onde é permitido ao homem chorar. É difícil encontrar uma pessoa que olhe para um dos exemplos acima e pense “que homem fraco, chorando porque ganhou a primeira corrida na vida” ou “porque ganhou a primeira Copa do Mundo de futebol para o Brasil” ou “porque conquistou o emprego dos seus sonhos depois de chegar ao fundo da pobreza”.
Só que tem outra forma de olhar para os três exemplos. Retirando os choros. Sem os choros, esses homens seriam vistos de forma pior?
Eu chuto que não. Talvez fossem igualmente elogiados. Talvez fossem até mais elogiados. O choro do homem tem um senso de “inescapável”. Somos tão treinados a engolir o choro desde crianças que, quando o choro ocorre, é porque ele escapa. É porque não deu para segurar. Às vezes, tudo bem, como nos três casos acima. Às vezes, não é tão aceito assim. É nessa configuração que encaixo a categoria da “crise interna”.
Quando o choro escapa em uma situação que não representa euforia, é bem provável que esse choro seja um sintoma de uma crise interna do homem. Essa crise pode ter vários motivos, mas via de regra ela está escondida, enterrada. Até que algum evento traz a crise à tona e o choro vem com a força de uma tsunami, contra a qual as barreiras que construímos por tanto tempo não são suficientes. É nesse choro que homens são vistos como fracos. É esse choro que é visto como não saudável. Ah, e também é nesse choro que a gente mais se comove quando acontece aquela identificação.
4. Neymar
Começando pela polêmica. Eu não sei se você acredita nesse choro do Neymar. Vamos definir como premissa que esse choro é real – a hipótese contrária nos levaria para uma análise completamente diferente.
Então, Copa do Mundo de 2018, primeira depois do 7×1. Já bota um peso enorme aí. Você é o líder técnico do time, o grande responsável por trazer um título e recuperar o prestígio do país após o maior vexame da história do futebol brasileiro. Você vem de uma contusão séria, que precisou de cirurgia e três meses de recuperação. Sequer teve tempo para recuperar a condição de jogo antes da Copa.
Ah, e teve a estreia, empate contra a Suíça, super frustrante.
No finalzinho do segundo jogo, gol, confirmando a vitória e melhorando a situação do Brasil no grupo. Acaba o jogo. Choro. Tsunami.
Mais uma vez, a premissa é de que o choro é real, honesto. Não faz todo o sentido? O choro de Neymar revela uma crise interna construída por uma série de pressões, algumas que eu nem citei ou nem conheço. O que eu espero não é que você acredite no Neymar. É que, nessa lista junto comigo, você perceba um padrão. Próximo exemplo então.
5. Thiago Silva
“O choro é válido no momento da comemoração. Fora isso, não me parece ser algo saudável”.
É, mais polêmica. Desse choro, ninguém duvida. Mas as críticas não foram mais suaves por isso. Como a frase destacada revela, e como eu mesmo falei muitas vezes em minha vida, o choro do Thiago na disputa de pênaltis contra o Chile, nas oitavas-de-final da Copa de 2014, no Brasil, não foi saudável. É o que eu e boa parte do Brasil pensamos.
O que o mesmo exercício feito com o Neymar revela? Uma pressão enorme. Capitão do time, segunda Copa em casa, tentando apagar o vexame de 1950. Melhor zagueiro do mundo para muitos. A seleção não joga bem. O Chile bota uma bola no travessão no último minuto da prorrogação.
Thiago não se sentiu apto a bater pênalti e pediu para ficar no fim da lista. Com a vitória do Brasil nos pênaltis, desabou.
As alcunhas para o caso foram de “desequilíbrio emocional”, “despreparo”. O capitão “precisa apoiar os outros, não ser apoiado”.
Independente de quão corretas essas frases possam estar na teoria, o fato é: Thiago chegou em um momento de crise e o choro escapou como uma tsunami. Nós olhamos para esse fato e criamos um segundo fato: julgamos, colocando mais pressão.
Tratamos o choro do Thiago como ilegítimo. O choro de um homem em crise. Só que é nesse momento que o homem mais chora. Quer ver?
6. Nasce uma Estrela
Jack (Bradley Cooper), em Nasce uma Estrela, filme concorrendo em várias categorias do Oscar 2019. Aqui ele está na clínica de reabilitação. Vou evitar spoiler, mas ele está aqui porque chegou ao fundo do poço e se sente extremamente culpado. É nesse momento que ele chora pela primeira vez no filme.
7. Gênio Indomável
Will (Matt Damon) levanta uma série de defesas para evitar seguir com a sua vida. Tudo pela culpa que sente do trauma em seu passado, os abusos que sofreu. Sean (Robin Williams) precisa do filme inteiro, mas derruba cada uma das defesas de Will. Quando as últimas defesas estão sendo atacadas, Will começa a chorar. Sua crise vem à superfície.
8. Clube dos Cinco
Achou que essa lista não ia ficar icônica? O Clube dos Cinco é um filme definidor de uma geração. A cena da “terapia em grupo” é a cena definidora do filme.
Andrew (Emilio Estevez) revela as pressões que sofre do pai para ser bem sucedido. A falha não é permitida em sua casa em hipótese alguma. Brian (Anthony Michael Hall) revela a solidão que sente ao entender que ninguém ali continuará seu amigo após a detenção.
9. Breaking Bad
Esse, como muitos outros, é mais um choro de Jesse Pinkman (Aaron Paul) ligados à culpa. Aqui a culpa é por ter tido vontade de matar Walter White – uma vontade bem plausível. Jesse também chorou na série ao sentir culpa pela morte da namorada, entre outras crises tremendas que o personagem viveu, a maioria causadas ou manipuladas por Walter.
10. The Affair
Em um exemplo menos conhecido, Noah (Dominic West) revela em uma cena para Alison (Ruth Wilson) seu maior trauma do passado. Seu trauma não só define seu arco em toda a 3ª temporada como alimenta as crises que definem o personagem. No único momento onde ele confidencia o trauma, chora em uma das cenas mais bonitas que vi na televisão.
11. Você Nunca Esteve Realmente Aqui
A crise devastadora pode ser revelada em um choro até quando esperamos violência extrema, como acontece em Você Nunca Esteve Realmente Aqui. Joe (Joaquin Phoenix), com sua coleção de traumas quase amaldiçoando sua existência, deposita toda a sua energia em uma violência vingativa. Até esse homem vive uma crise intensa quando não consegue entregar a violência que espera.
12. Interestelar
Retornando a um exemplo mais mundano – ainda que em Interestelar, uma ficção científica – a crise de Cooper (Matthew McConaughey) está associada à saudade da filha, Murph (Jessica Chastain). Ao vê-la em vídeo mais velha do que ele – por estar em uma viagem espacial que altera a relação com o tempo – o peso da decisão de Cooper de entrar naquela missão vem à tona, quando ele vê o que perdeu.
13. Locke
Já Locke (Tom Hardy) vive a crise em sua plenitude não por um motivo, mas por vários. Muitas das questões masculinas – já comentadas aqui no PdH nesse texto – estão presentes nesse filme e são colocadas em conflito direto uma com a outra. Locke é pai de família, é respeitado no emprego, tem os típicos pilares da masculinidade erguidos. Até que todos começam a desmoronar.
14. 12 Homens e uma Sentença
Em 12 Homens e uma Sentença, a crise também se revela no júri decidindo o destino de um garoto em um caso de homicídio. Para o Jurado 3 (Lee J Cobb), sua relação com a paternidade, com o seu próprio filho, é colocada à prova e resulta em choro ao tentar julgar o réu.
15. O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei
Quando uma das amizades masculinas mais relevantes da história do cinema encontra sua maior crise em O Retorno do Rei, esses homens estão em crise. Frodo (Elijah Wood) lacrimeja enquanto se sente traído por Sam (Sean Astin). Já Sam chora mesmo sabendo que não traiu Frodo. Ali, ele perdeu sua função. A promessa que Gandalf fez ele seguir e cumprir mesmo que custasse sua vida. Nessa falha, Sam sente que perdeu seu valor, o que também diz de seu valor como homem.
16. This is Us
Como um último exemplo de choro de crise, vamos usar This Is Us. Randall (Sterling K Brown) convive com um tipo específico. Crise de ansiedade. Um tema pouco visto relacionado a homens em narrativas. Aliás, se você quer ver homem chorando, veja a série.
Choro do Luto
A emoção do choro pode vir como algo incontrolável também fora de crises, ou em um momento que mistura as coisas. O luto. A dor da morte de alguém, assim como a vitória, gera um dos poucos momentos em que o choro do homem é mais facilmente aceito.
No entanto, a lógica continua: se o homem não chorar, isso também será visto como positivo.
17. Homem Aranha
Um dos três heróis mais populares de todos os tempos tem no luto sua grande lição e motivação. A morte do tio Ben reflete em Peter Parker em todas as histórias. No primeiro filme do Homem Aranha, o personagem de Tobey Maguire chora misturando o luto à culpa que sente pela morte do tio.
18. Seven
Já em Seven, o detetive Mills (Brad Pitt) vive o luto em uma mistura com a ira, o pecado capital que John Doe (Kevin Spacey) visa revelar usando o detetive. O medo que Mills sente nessa cena se torna palpável através de seu choro.
19. O Poderoso Chefão
Poucos personagens são tão icônicos quanto Don Vito Corleone (Marlon Brando), de O Poderoso Chefão. É no choro pela morte de um de seus filhos que ele revela onde está sua prioridade, mesmo em um mundo tão violento e corrupto como o da máfia. Aquele é o limite que aquele mundo não deveria ultrapassar em sua visão.
20. Blade Runner
O choro do luto pode tomar outra forma. Uma contemplação da própria morte. É o que acontece com o replicante Roy (Rutger Hauer) em Blade Runner. A sua incapacidade de chorar enquanto replicante é compensada pela chuva que disfarça lágrimas, enquanto ele faz o monólogo que entrou para a história do cinema. Esse luto pela própria morte também revela uma espécie de crise. A injustiça que Roy sente em seu âmago por ser considerado não-humano.
21. Logan
Vemos o mesmo luto por si próprio em Logan (Hugh Jackman). Sua existência incluía crises relacionadas à sua imortalidade, à sua violência, a ser caçado como mutante. Seu choro muda um pouco a figura. Ao invés de sintoma de crise, ele revela quase um alívio por uma dissolução das crises através da morte.
22. Os Últimos Jedi
Semelhante ao choro de Logan, temos as últimas lágrimas de Luke em Star Wars: Os Últimos Jedi. Ao ajudar a Resistência e usar toda a sua habilidade com a Força, Luke se reconecta com princípios que deixou de lado há muito tempo. Seu choro revela a consciência e a superação da crise que carregou por anos.
Choro da desumanização
O clima estava melhorando, mas ainda temos um ponto sério a perceber. Nas narrativas, a maioria dos personagens tem um perfil bem visível nas imagens acima. São brancos. Quando é que o homem negro chora, então? Quando esse choro é aceito ou representado?
Uma das ocasiões é na vitória, o choro da euforia, como visto com o exemplo do Pelé. Outra das ocasiões ocorre quando o homem negro é desumanizado. O caso mais comum disso é a escravidão.
23. 12 Anos de Escravidão
O choro da escravidão pode até ser entendido como o resultado de mais uma crise interna. A diferença é que essa crise tem uma origem externa clara. A desumanização de todo o tratamento dado à pessoa escravizada. No caso de Solomon Northup (Chiwetel Eijofor), em 12 Anos de Escravidão, esse sentimento ainda se confronta com seu conhecimento sobre a liberdade, a saudade da família, já que ele foi escravizado quando adulto, após um sequestro.
24. Corra!
Nem precisamos ir para casos históricos para ver esse efeito. Em Corra!, Chris (Daniel Kaluuya) é feito de escravo dentro de sua própria mente, fornecendo seu corpo para uma mente hospedeira de uma pessoa branca. Na hipnose em que ele é preparado para o procedimento, completamente imobilizado, o choro é a única forma de expressão restante.
25. Sex Education
A desumanização também pode ocorrer de outras formas. Em Sex Education, Eric (Ncuti Gatwa) é homossexual e foi espancado por isso. Ainda que não esteja em uma situação análoga à escravidão, outra parcela de sua personalidade não é aceita e forças externas o castigam por isso. Seu choro, como reação direta, revela mais uma forma de se sentir menor por ser quem é.
Choro de Cura
Nesses 25 exemplos que vimos acima, pudemos compreender três momentos típicos onde o choro masculino é aceito: a vitória, o luto e a desumanização. Também vimos um tipo de choro que não é igualmente aceito, mas que é um grande sintoma de nosso estado emocional fragilizado, o choro que revela severas crises internas.
O que essas quatro categorias de choro têm em comum? Mesmo quando aceito, em nenhum deles esse choro foi bem-vindo ou celebrado pelo homem que chorou. O choro simplesmente escapou. Não foi possível segurá-lo perante a emoção.
É possível entendermos o choro de uma quinta forma, uma que nos faça nos sentir bem por estar chorando, aceitar esse momento de emoção à superfície com compaixão. É o que, sem criatividade, estou chamando de choro de cura. Como no último exemplo da lista.
26. Me Chame pelo seu Nome
Na última cena do filme Me Chame Pelo Seu Nome, Elio (Timothée Chalamet) lida com o fim da fantasia que viveu ao longo do filme. A vida chegou com seus obstáculos e ele, um jovem, está tendo essa experiência pela primeira vez.
Antes, Elio teve o momento mais questionador em uma conversa com o pai, uma das cenas mais incríveis do cinema em 2017. Após a conversa, Elio aceita que seu momento de tristeza é legítimo. Ele se agacha em frente à lareira e chora, enquanto a mãe passa atrás arrumando a mesa. Seu choro não é motivo de preocupação para a família, é normal. Seu choro não é motivo para colocar as mãos no rosto e esconder lágrimas, para gritar, para se isolar em um quarto fechado.
Não há vergonha, medo, raiva, euforia, nenhum sentimento mais “comum” para os homens junto ao choro de Elio. Ele aceita seu processo de dor pelo fim do relacionamento e aceita o choro como parte do processo de cura.
Os 25 choros anteriores não são um problema. Faz sentido que aqueles homens tenham chorado naquelas ocasiões. Talvez, o problema seja o padrão que revelem sobre como ou quando não choramos.
Nesse último choro talvez esteja um novo objetivo para almejarmos. Uma relação mais saudável, com mais compaixão, com nossas emoções que ultrapassam barreiras e simplesmente aparecem.
A discussão proposta aqui tem muitas nuances. Para quem quer mergulhar um pouco mais nela, fica o convite para o primeiro episódio do podcast Homem Também Chora, sobre choro. O podcast é um projeto com foco em investigar a masculinidade padrão e descobrir no processo masculinidades sadias e possíveis.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.