Nota editorial: acreditamos que nudez, sensualidade, desejo e diversidade são discussões essenciais de nosso tempo. E que há espaço para tratar disso sem objetificar e ofender, mas sim valorizando toda a riqueza do masculino e do feminino. Para entender porque publicamos ensaios de homens e mulheres e saber mais sobre o que aspiramos para a série "Bom dia", leia o que escrevemos aqui. E se tem um ensaio que deseja publicar, fale conosco pelo luciano@papodehomem.com.br .

* * *

Só o fato de posar nua já era, para mim, uma experiência com uma intrigante mistura de um leve carinho no próprio ego e uma timidez paralisante. A ideia surgia na minha cabeça como os “dates” que eu nunca consegui cumprir, por simples medo do começo. A dúvida do que seremos quando não soubermos o que fazer é sempre agoniante.

Naquele dia o meu desafio maior era conseguir me entregar totalmente para aqueles dois – fotógrafo e câmera – de um jeito sem devolutiva. Um desafio meu comigo mesma, quase ou totalmente, submetendo-me a uma vistoria do meu amor próprio. Aqueles dois, juntos, me observando, tirando ângulos meus que eu nunca talvez vi e registrando-os para sempre num efêmero eterno.

Apesar de todos os medos, eu me considerava pronta pra isso. Para deixarmos as coisas mais íntimas pra mim, decidimos fazer o ensaio na antiga casa que cresci. Uma casa que eu não voltava a seis anos e que, desde então, foi completamente abandonada. Antes de entrar na casa, eu jamais teria imaginado como seria aquele momento. A primeira imagem ainda se confunde em um odor intragável de sujeira de gato com muita poeira, estilhaços e cor de marrom. Fui entrando em todos os cômodos extasiada com aquele momento tão cheio de lembranças minhas que mais pareciam de outra vida. Passei pelo antigo closet de minha mãe e me lembrei vagamente, mas com muita intensidade, como minha mãe se incomodava quando eu passava só de calcinha do banheiro no final do corredor, ao lado do quarto dela até o meu quarto.

Não consegui me lembrar de uma só vez que eu pude passear sem roupa livremente entre aquelas paredes.

Leia também  Rush toca no Brasil em outubro

A estranha e maravilhosa sensação de rebeldia preencheu todo meu corpo. Quando cheguei no fim do corredor, de frente à porta do banheiro e ao lado da porta do quarto dos meus pais, olhei o largo espelho lateral e vi meu reflexo confundido com antigas lembranças e percebi ali que, não era só a casa que estava completamente modificada. Eu também estava. Então ficamos ali, por longos minutos breves, se encarando, eu e a casa. Nos medimos. Nos reconhecemos. O tempo tinha mudado tudo em nós. Nossa estrutura. Nossa cara. Nossas marcas. Nossa rotina. Nossa representação. Aquilo era maravilhoso.

Começamos as fotos ali mesmo, no quarto da minha mãe, em cima da cama de alvenaria que eu vi meu pai fazer com as próprias mãos. Não existia mais medo. Não existia mais vergonha. Não existia mais espaço pra isso. A manhã inteira de fotos foi pra mim não só a libertação da minha própria ideia do meu próprio corpo. Não foi só um grande aprendizado de entrega a um retrato e do aprendizado ao contato com a lente da câmera. Não foi só a afirmação da minha já certeza de liberdade da minha própria sensualidade. Foi também uma libertação de todas as dúvidas que eu tinha sobre o caminho que eu escolhi. Foi principalmente a libertação divina de todas as coisas que eu nunca fui, de todas as coisas que eu nunca quis ser.

Receber as fotos dias depois e ver o resultado foi como receber a ligação do dia seguinte. Um carinho inesperado. As fotos traziam toda essa sensação de volta pra mim. Como se a câmera e o fotógrafo tivessem realmente conseguido participar de mim mesma naquela manhã inesquecível. E até os defeitos que eu sempre reclamo em mim já não eram mais importantes. As fotos eram um retrato de coisas muito mais intensas do que isso. A devolutiva que eu não saberia que teria. A reciprocidade no amor.

* * *

Você pode ver mais fotos do Lucas Gatto no seu Instagram.

 

 

 

 

 

 

​​​​​

 

 

 

 

Jessica Targa

Designer.