Em fevereiro de 2009, no meu último Carnaval antes de sair
de casa rumo a São Paulo e deixar Belo Horizonte para trás, realizei um sonho:
pulei dentro de um carro velho de guerra com três primos e dirigimos 27 horas
ininterruptas até Olinda e Recife. Subi e desci ladeiras. Encontrei amigos e
parentes. Pulei como um maluco no show da Nação Zumbi no Marco Zero.
De três folias para cá, tenho realizado um sonho ainda
maior.
Desde 2013, volto paulatinamente para pular o Carnaval em
Beagá. E felizmente, entre confetes e serpentinas, não é mais a cidade em que
nasci que encontro a cada ano que passa.
Por isso, peço licença para transformar a tradicional
listona de sábado do Papo de Homem em uma relação de um tópico só, que pode
levar mesmo quem não gosta de festa a apreciar o Carnaval.
1) O Carnaval pode ser uma ferramenta de transformação
Belo Horizonte tinha (e ainda tem) um Carnaval de escolas de
samba, baseadas em bairros periféricos – a mais conhecida pela minha
geração e a única com quadra própria é a Cidade Jardim, criada em 1961. Apesar da tradição, o desfile
tradicional era algo marginalizado pelo poder público reiteradas vezes: a
notícia mais constante sobre o Carnaval era sobre a briga por tirar o desfile
da Afonso Pena, principal avenida da cidade, e jogar em uma BR ou outro braço
asfaltado qualquer longe do centro.
Para essa briga contra o periférico as prefeituras sempre
estiveram preparadas, e venciam o braço de ferro em nome da paz e da ordem em
uma região mais endinheirada. Mas não estavam, e ainda não estão, para lidar
com manifestações culturais articuladas em rede – principalmente levando em
conta que quem as orquestra hoje é uma galera com acesso a níveis mais altos de
educação, menos sujeita à opressão e mais acostumada a questionar o Estado.
O grande ponto de virada para a nova leva de blocos do
Carnaval de Belo Horizonte foi a Praia da Estação.
Em dezembro de 2009, o prefeito Márcio Lacerda baixou um
decreto estapafúrdio,
que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação,
um dos pontos mais centrais e turísticos da cidade. A resposta foi em tom de
intervenção: transformar a Praça e seus chafarizes em praia – o espaço público
mais popular e aberto possível – e manifestantes em banhistas.
O movimento ganhou escala, a conotação de ocupar espaços
públicos se ramificou junto com blocos recém criados e em outros batuques que
apareceram na sequência. Em 2012, o Concurso de Marchinhas Mestre Jonas foi
realizado pela primeira vez e aumentou o tom político com composições como essa
pérola aqui:
Embora a folia crescesse a olhos vistos, ela ainda acontecia
à margem do poder público que insistia em não reconhecer o que acontecia.
Fechar ruas para um bloco passar, por exemplo, era tarefa impossível. Nesse
mesmo 2012, enquanto acompanhava a folia à distância com um outro grupo de
amigos novamente em Olinda, decidimos: estava passando da hora de passar nosso
primeiro Carnaval em Belo Horizonte.
Em 2013, me apaixonei à primeira vista pelo Então Brilha,
bloco que sai da Rua Gaicurus zona de prostituição decadente no centro de BH.
Foi quando fotografei essa cena aqui, entendi que era questão de tempo até que a
cidade fosse contaminada por inteiro e que o Carnaval só faria sentido se fosse
pra todo mundo.
De lá pra cá, o Carnaval explodiu (estima-se em 1,3 milhão
de pessoas o público presente em 2015. Só o bloco Baianas Ozadas arrastou 100
mil pessoas). Patrocínios apareceram e, claro, a Prefeitura tentou engessar a
festa.
As leis atuais não reconhecem os blocos como manifestações
populares e sim como eventos – o que implica em trâmites surreais, na exigência
de licença prévia para desfilar e abre a porta para a responsabilização de
músicos e organizadores por possíveis danos causados pelos foliões.
E mesmo quando Salvador começa a experimentar com sucesso um dia de Furdunço,
sem cordas e abadás, há quem cogite seguir o exemplo contrário e criar um
circuito para limitar o trajeto do blocos e freiar o espontâneo.
É uma ideia que não pode e, acredito, não vai colar.
O belorizontino se apropriou das marchinhas, das antigas
músicas do Carnaval de outros cantos, do espirititual e criou uma folia
particular. Aqui, há um bloco meio Hare Krishna e meio Afoxé. Aqui, há um bloco
que toca jazz. Aqui, existem blocos que levam foliões para pisar em favelas,
bairros pobres e assentamentos que muitos jamais conheceriam, como o Aglomerado
da Serra, a Pedreira Prado Lopes ou as Ocupações da Região da Isidora, que
lutam pelo direito à moradia.
A festa não é só de Momo ou de quem banca e regula os
festejos. A folia é e precisa ser de todo mundo – em BH, Salvador, Olinda, Recife, Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar (estou olhando pra você, minha São Paulo adotiva, com a ideia de colocar um cerco policial na Vila Madalena e limitar a 15 mil o número de foliões).
O que cidadãos, operadores do turismo e políticos dos
poderes legislativo e executivo precisam fazer é reconhecer as origens e implicações de movimentos como esse e dialogar, ombro a
ombro, sobre o Carnaval e suas revoluções.
Documentário lindo dirigido por Fred França, com roteiro e
montagem de Mancha Leonel, produtor cultural de São Paulo que adotou o
Carnaval de BH. Aumente o som e assista em tela cheia.
Tocado pelo vídeo acima, pelo que o Mancha chamou de poder
transformador da diversão e por uma conversa com a querida Nina, nesse ano
voltei a BH com minha câmera e a disposição por registrar a folia. Separei aqui
alguns dos registros que mais gosto, para quem quiser sentir um gostinho do
tesão de lavar a alma que é passar o Carnaval de Belo Horizonte.
Enquanto finalizo esse texto, me preparo para o Vira o
Santo, ocasião que reúne todos os blocos nesse sábado de ressaca do Carnaval
justamente na Praça da Estação.
Mesmo assim, o desejo é um só: chega logo, 2016.
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