Já pensou em aprender a origem do mundo pela trajetória de Oxalá?

O curta de animação em stop motion Òrun Àiyé pode ser um recurso pedagógico para explorar a cultura e religião afro-brasileira nas nossas escolas

O ser humano passou a construir narrativas tão logo começou a existir. Estou satisfatoriamente convencida de que esse é realmente o nosso modo de acumular cultura e especular os fenômenos de natureza.

Veja bem, isso está sendo feito desde antes da linguagem verbal surgir e podemos dizer que, hoje, nossas duas principais explicações para as razões de ser desse mundo de meu deus são também histórias – só que contadas com palavras.

Se você é uma pessoa comum cuja infância foi abastada o suficiente pra que uma escola fosse parte significativa do seu dia, com certeza já teve o mundo explicado pela teoria evolucionista nas aulas de biologia, ciência, história ou seja lá qual for das pretensas divisões do conhecimento.

E se você é alguém que... bom, já saiu às ruas, digo com segurança que a mesma coisa lhe foi explicada do ponto de vista criacionista-cristão.

Nenhum problema nisso, afinal, quem sou eu pra dizer que não é bom questionar-se acerca dos porquês de estarmos aqui agora. E se você me argumentar que ambas as teorias são interessantes, eu vou concordar e lhe dizer pra mandar mais que tá pouco – e é exatamente isso que a animação em stop motion Òrun Àiyé está fazendo.

Com produção da Estandarte, que já tem experiência na criação de projetos com fins pedagógicos, o curta animado conta a história do mito da criação do universo pelos simbolismos da cultura afro-brasileira e a trajetória de Oxalá – que é contada de diferentes maneiras por aí, mas no filme está estruturada de acordo com a versão do historiador Ubiratan Castro de Araújo (1948-2013).

Se girarmos o foco das teorias da ciência para a mitologia, a cultura oral e a religião, o espectro de possibilidades cresce e nos vêm à mente as ideias de deuses múltiplos. Esse conhecimento é valioso não só pela fé e culto religioso dessas histórias, mas pelo que dizem sobre os diferentes modos como os hábitos sociais foram organizados. Além disso, é interessante pra que nos demos conta da pluralidade cultural e religiosa para além do cristianismo dominante por aqui.

A pré-estréia do filme de doze minutos acontece hoje, às 19h, em Salvador, e o Lucas Caldas, assessor de imprensa do projeto, já me disse que o plano é fazer rodar uma série de curtas. Ao fim do processo, o produto deve ser distribuído às escolas públicas de todo o Brasil para ser trabalhado em sala de aula com crianças e adolescentes.

A cineasta Cintia Maria é uma das diretoras do filme que levou mais de 25 mil quadros fotográficos para ser produzido e tem audiodescrição para cegos, subtitulação para surdos e legendas em seis línguas, incluindo o yorubá e a língua brasileira de sinais

O curta baiano já ganhou o prêmio na categoria “Novos Talentos” do Festival Brasil Stop Motion, o maior na América Latina, e foi dirigido pelas cineastas Cintia Maria e Jamile Coelho, que reforçou a sua função didática: “Esse material paradidático permitirá às crianças e jovens a ampliação da noção de cultura negra trazida da África para o Brasil, proporcionando uma educação que reconheça e valorize a diversidade, comprometida com as origens do povo brasileiro”.

Se esse trabalho ocorrer no sentido contrário da doutrinação mas com a intenção de oferecer conteúdo, pode ser muito produtivo – a nós parece evidente que receber informação sobre nossas principais bases culturais tem o potencial de promover uma maior capacidade de compreensão da dinâmica social, do lugar histórico dos povos e religiões, do ‘eu’ inserido no todo e um real senso de pertencimento à cultura em que se vive. Competências todas que estimulam a tolerância da diversidade e a curiosidade pelo outro.


publicado em 15 de Janeiro de 2016, 16:55
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Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.


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