Lamento informar: nem só de papo cabeça vive o homem. Vive, também, de curtir aquela velha obsessão que compartilhamos com nossos antepassados mais remotos, ou seja, admirar e desejar o corpo feminino. E nada melhor do que quando uma obsessão assim tão boa encontra expressão no talento de um grande artista. Essa é a ideia de Mulheres e Nanquim, sessão que pretende apresentar grandes desenhistas que se tornaram célebres por sua habilidade em retratar mulheres deliciosas.
Começaremos com uma artista muito recente. Apollonia Saintclair é o pseudônimo de uma desenhista que preferiu não se identificar até agora, apesar de todo o sucesso recente de seus desenhos na Internet. Possivelmente, ela (ou ele) vive em algum lugar onde se fala francês, a julgar por sua preferência pela língua para intitular suas obras e de seu inglês correto demais.
Apollonia Saintclair conseguiu popularizar seu trabalho em seu perfil no tumblr, criado em 2012. O pouco que sabemos a seu respeito vem da recente entrevista que deu à jornalista parisiense Adeline Wessang. Suas influências declaradas são Milo Manara, Moebius, Da Vinci e Caravaggio, entre outros.
Uma das melhores abordagens de Apollonia Sinclair consiste em “objetivar” o corpo feminino. Em muitos de seus trabalhos, a artista retrata apenas partes do corpo de belíssimas mulheres, ocultando rostos ou tornando as feições de suas “proprietárias” apenas um detalhe secundário da perspectiva. Desse modo, Apollonia flerta com a fantasia masculina (e feminina, claro) de tornar o corpo feminino mero objeto de seu prazer, sem consideração com a personalidade. Em uma era de incansável patrulhamento do politicamente correto, isso chega a ser quase uma leve transgressão, o suficiente para apimentar um pouco mais seus trabalhos.
Mas suas obras não se reduzem a simples representação pictórica do corpo feminino: muitos de seus desenhos sugerem histórias nas quais as imagens retratadas por Apollonia são “capturas” de momentos sensuais.
“A criação é uma tentativa de descrever o indescritível: tentar conferir uma forma tangível a uma intuição abstrata.”
Isso foi o que disse Apollonia na entrevista. A imaginação necessária para isso viria da leitura de autores como Jorge Luis Borges, H.P.Lovecraft, Richard Matheson, Gustave Flaubert, Frank Herbert, Henry Miller e Anaïs Nin.
“Tinta é meu sangue, desenho para meu próprio bem e para meu prazer.
[…]
Residente de longa data do velho mundo, divido meu tempo entre a cozinha e meu estúdio.”
Informações da Apollonia em seu Tumblr.
O que nos faz imaginar se não estamos, na verdade, diante de um nerd gordinho, esperto o suficiente para saber o apelo que há na ideia de uma mulher que reproduz com precisão o imaginário erótico masculino. Mas isso importa?
A escolha por criar apenas obras em preto-e-branco, como afirmou, origina-se não só da influência dos quadrinhos em sua vida, mas, também, de uma decisão bastante inteligente:
“Para aprender, devemos reduzir o leque de possibilidades.”
Além disso, “preto-e-branco é um nível adicional de abstração que me permite concentrar nos fundamentos do desenho, como silhueta, sombras, geometria, etc.”
Mas, em termos de transgressão, Apollonia vais mais longe e aproveita-se do anonimato para brincar com a religiosidade ocidental. Talvez não seja por acaso que seu pseudônimo faça alusão a Guillaume Apollinaire, poeta e escritor francês que, em 1907, publicou o romance erótico Les Onze Mille Verges (As Onze Mil Virgens). O título satiriza a lenda das virgens que teriam acompanhado o martírio de Santa Úrsula, e a obra relata aventuras sexuais escabrosas em que rola sadismo, masoquismo, escatofilia, pedofilia, vampirismo, masturbação e sexo grupal.
“Uma das minhas histórias favoritas de Lovecraft chama-se precisamente “O Indizível”, afirmou Apollonia na entrevista concedida à Adeline Wessang. Ela refere-se ao conto “The Unnamable“, publicado em 1925 pelo autor americano. “Ao longo da história”, continua a artista, “o narrador de Lovecraft fala, com certo deleite, sobre um horror inominável, sem jamais conseguir, mesmo quando o horror acaba por realmente se materializar, descrevê-lo em palavras.” Apesar dessa sua fonte inspiração, muito dificilmente será horror o que nós sentiremos ao ver as obras de Apollonia Saintclair.
Porém, com certeza também ficaremos sem palavras ao observar as deslumbrantes mulheres que desenha.
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