Volta e meia, ser médico ainda é assustador.

Uns dois meses atrás, acompanhava uma discussão entre psicanalistas, quando alguém comentou: "interessante como, com o tempo, nos tornamos muito diferentes de nós mesmos. Sabe quando você pega um livro que já leu, vê uma passagem que você grifou e se pergunta: 'por que eu grifei isto mesmo?'? É como se existisse uma pessoa diferente de nós morando aqui dentro".

Penso nisso quando reparo que não sei mais porque escolhi fazer medicina.

O que eu pensava que fosse ser meu trabalho? Como eu imaginava que fosse lidar com sofrimento e morte diariamente? O rapaz que fez aquele X na ficha do vestibular ainda fica perplexo de vez em quando.

Hoje isso aconteceu de novo.

Saindo da UTI, encontrei no corredor o filho de um paciente de quem cuidei na última semana. A despeito de todo o tratamento precoce, intensivo e adequado, seu pai está morrendo.

Na chegada, passei a madrugada passando catéter, expandindo, colhendo culturas, fazendo paracentese, repetindo gasometrias, fazendo tomografia; sexta-feira fui eu a lhe explicar que, por causa da piora, iria deixá-lo dormindo com os aparelhos respirando por ele e que iria despertá-lo quando estivesse melhor.

Essa parte do trabalho sempre me assusta, pois não só não sei se é verdade que o paciente vai melhorar o suficiente para ser despertado, como também tenho a nítida impressão que o que estou lhe pedindo é que confie em mim e morra de um modo mais ou menos controlado. Ninguém sabe se ele vai voltar depois disso.

Este paciente serenamente disse "sim", confiou em mim e se entregou.

Eu acho que ele nunca mais vai acordar.

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Agora eu me encontrava em frente ao seu filho, que estava cercado de amigos, chorando e sendo consolado. Ele acenou para mim e me aproximei. Disse que sabia que seu pai estava chegando ao fim. Agradeceu o cuidado e a dedicação.

Então perguntou: "o senhor foi o último homem com quem meu pai conversou, não?"

Mordi o lábio e fiz que sim com a cabeça. A palavra "homem" foi reveladora!

O homem que o educou, criou e acolheu quando criança, que de mil formas foi o exemplo do homem que ele próprio é está morrendo. Além disso, mesmo cercado de amigos, era em mim que buscava consolo para o inevitável?

"Posso te dar um abraço?"

O garoto que, há alguns anos, fez o X naquela velha ficha de inscrição, prendeu a respiração; já eu o abracei, mas segurei as lágrimas. Todo mundo sabe que homem não chora.

Marco Oliveira

Médico intensivista. Busca respostas para o que vive no dia-a-dia da UTI na Psicanálise, filosofia e história.