Além do Preconceito - CFC (Curso de Formação de Condutores)

Qualquer cara que tenha dado entrada recentemente no processo para obtenção da CNH – Carteira Nacional de Habilitação – provavelmente se emputeceu bastante. O processo é longo e provavelmente você ouviu do seu pai um “no meu tempo não era assim”.

Além de aturar algumas famigeradas características de serviços públicos, como mau humor, má vontade e filas, ainda nos deparamos com uma série interminável de taxas e custos que tornam a obtenção do documento bastante cansativa e cara. Em média, espera-se que o processo dure de 2 a 4 meses (dependendo da disponibilidade do candidato) e que o custo total supere mil reais em caso de carta de categoria AB, apta para carros e motos, sendo que este valor pode chegar a mais de um barão e meio dependendo do estado.

Como se não bastasse, ainda temos que passar por todo o processo ciente das máfias internas dentro de cada uma das etapas, coisas que são mais ou menos difundidas dependendo da cidade – aqui na minha, por exemplo, todo mundo sabe (ou acha que sabe) de todas as sacanagens que rolam relacionadas ao CIRETRAN daqui. Mas não entremos nesse mérito.

Para tirar a CNH, é preciso fazer uma proposta que eles não poderão recusar

Toda essa carga de custos e enchimentos de saco é responsável por criar um preconceito enorme (em todos aqueles que estão tentando se habilitar à direção, sendo jovens ou não) direcionado ao CFC, o curso de formação de condutores, que passou a ser obrigatório a partir de 1998 e que, desde então, vem sofrendo algumas mudanças que culminam no formato em vigor: são 45 horas/aula, ou seja, é tanto tempo quanto uma cadeira semestral de faculdade.

É um curso teórico de longa duração feito, na maioria dos casos, depois de um dia cansativo de trabalho. São aulas ministradas por professores apáticos em salas desconfortáveis. Fecha a brincadeira toda o fato de esse "brilhante" curso ser pago.

Pouca gente sabe, mas o novo CTB (com suas mil restrições, milhões de infrações e mínimos detalhes) surgiu de uma necessidade urgente: em meados dos anos 90, o Brasil era o campeão mundial em mortes no trânsito, mesmo estando longe de ser dono da maior frota de veículos do mundo. Além disso, o antigo CTB, de 1940, datava de uma época em que a frota total passava pouco de 1 milhão de carros. Nos anos 90, tínhamos 30 milhões.

Até consigo entender o desespero dos legisladores de trânsito e governantes competentes ao se dar conta de uma informação dessas. Não sei os números da época, mas estima-se que hoje morram mais de 50.000 pessoas por ano no trânsito (os números oficiais são mais baixos que isso pois só contam as mortes no local), isso sem contar uma infinidade de pessoas que tiveram ferimentos graves.

No CFC, eu me peguei realmente aprendendo algo em cada uma das disciplinas ministradas. Não porque eu decorei o conteúdo da apostilazinha para a prova final, mas eu parei para pensar em assuntos sobre os quais eu nunca me questionei. Em cidadania, por exemplo, constatei o óbvio: grande parte dos problemas do trânsito tem origem numa cultura do “eu”: minha pressa, meus horários, meus direitos, minha preferência, meu carro, e olha que eu não vou nem entrar no mérito da polêmica do brasileiro comprar carro que nem desesperado e ainda andar sozinho nele.

Para salvar minutos (muitas vezes minutos de bunda grudada no sofá vendo TV), as pessoas cometem imprudências que põem em risco todos os habitantes do trânsito, de pedestres a si mesmo. Lei de trânsito não é frescura, lei existe pra manter vidas. Manter as duas mãos no volante não é babaquice, você não poder dirigir com chinelo não é pra te deixar bonito. Para grande parte das leis, é possível conseguir uma explicação muito lógica e muito intimamente ligada à segurança do próprio condutor.

Link YouTube | Esse é você no seu cotidiano no trânsito. E nem adianta dizer que não

Acreditem ou não, lhes diz isso um cara que possui uma aversão natural a leis e normas. O caso da obrigatoriedade de itens de segurança (como capacetes e cinto de segurança) foi uma etapa que me deixou muito confuso. Eu, como premissa pessoal, reprovo veementemente toda e qualquer lei que se meta na minha liberdade a fim de assegurar a minha própria segurança. Acho que todo mundo tem o direito de saber o que quer pra si, fazendo mal ou não. Mas foi uma outra coisa que eu consegui entender: se o estado não obriga, as pessoas simplesmente não fazem. Se as pessoas não fazem, elas continuam a morrer e nós continuamos a ter um trânsito selvagem. E, na obrigatoriedade, você faz o hábito.

Todas essas conclusões eu tirei do CFC. Não porque o curso seja excepcional, mas porque é válido parar um tempo da vida para pensar no trânsito. E mais do que essas mil informações relativas a seguranças (daria pra estender esse assunto até o texto ficar ilegível de tão enorme), você se vê obrigado a pensar em outras coisas: você tem colhões para agir racionalmente em caso de acidente e não mexer no acidentado a menos que seja estritamente necessário? Você tem a moral de executar uma manobra de massagem cardiorrespiratória?

Mais do que aprender procedimentos, você se vê obrigado a pensar no assunto. Eu, por exemplo, tive uma quase epifania na aula de meio ambiente e, mesmo sem entender o porquê, decidi que nunca mais jogaria um lixo, por minúsculo que seja, no chão, principalmente as bitucas de cigarro. E por incrível que pareça, eu realmente largar meu resto por aí após fumar. Não porque eu não sabia que isso é errado e prejudicial, mas porque eu fui forçado a pensar no assunto.

O curso também me serviu pra achar o mundo e as pessoas mais escrotas do que eu já acho: uns 30% da minha classe já dirige na cidade mesmo sem ter a habilitação e boa parte deles faz cara de revoltado ao ouvir que, por exemplo, colocar marcha turbo em carro de passeio pra andar no centro da cidade é proibido. Porque qualquer modificação nas condições originais do carro sem permissão é infração, o que inclusive pode poupar nossos olhos dos tunings bregas.

Outro exemplo indignante é o caso do DPVAT, o famigerado seguro obrigatório. Pouca gente sabe, mas esse seguro serve pra alguma coisa e premia a família de um ou mais falecidos em acidente de trânsito em pouco mais de R$ 13 mil por óbito, além de cobrir parcialmente custos hospitalares decorridos de ferimentos.

"Tunar" o carro. Devia ter multa também pro mau gosto

Para resgatar o prêmio, basta reunir uma documentação relativamente simples e encaminhá-la a qualquer seguradora comercial de uma lista enorme de nomes e esperar a grana em até 15 dias – o processo é bem pouco burocrático se comparado ao que estamos acostumados no Brasil. É um direito do qual pouca gente tem ciência – e existem aproveitadores que sabem disso. Minha professora contou casos de pessoas que abordam famílias desesperadas após um óbito, ainda no hospital (um contato pré-estabelecido faz a ponte), dizendo que há um seguro que dá direito a 6 mil reais.

No desespero, as famílias assinam uma permissão de resgate que dá direito ao gente boa de pegar a grana. Nem preciso contar o resto: o filho da puta pega boa parte do dinheiro, “agradece” o contato no hospital e dá para a família menos da metade do valor de direito, que provavelmente nem nunca vai saber que foi enganada.

Mais do que um post politicamente correto, acho que esse assunto diz muito sobre ser um homem, sobre assumir o seu papel no mundo. Temos (na verdade, vocês condutores tem, e eu não, já que nem dirijo ainda) que parar de dar desculpas no trânsito: tô com pressa, preciso buscar fulano, as estradas são uma merda, o sistema é corrupto, a engenharia de trânsito é caótica. Assumir a sua parte nessa bagunça toda e fazer o mínimo possível é mais do que ser certinho, é se manter vivo e manter os outros vivos.

E, por isso, eu acho que o CFC deveria ser obrigatório até mesmo no processo de renovação de CNH. Não pra decorar conteúdo e passar na prova, mas pro antigo condutor ter a chance de pensar no que ele está fazendo. Enganar o guarda passando o cinto ou reduzindo a velocidade assim que o vê não prejudica o guarda, prejudica você, a sua mulher que tá contigo dentro do carro, seu filho e o filho dos outros.


publicado em 05 de Setembro de 2011, 05:08
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Lucas Carvalho

Interiorano que mora sozinho em São Paulo e está possivelmente assustado com tudo isso. Formado em marketing, prefere passar o dia construindo planilhas. \r\n\r\nÚnico pet considerado é uma aranha grande, peluda e azul. gosta de cozinhar para cambadas, mas não lava a louça. não deve ser inteiramente levado a sério, já que ainda joga pokemon blue no emulador.


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